Leonardo Fróes1
A atual barbárie
humana, com um consumismo perdulário de um lado e, do outro, multidões de
famintos, acha-se prefigurada no horror que Thomas Merton1 expressa, em seus
diários, pela sociedade americana que instituiu e globalizou o modelo.
"Penso que o mundo americano em 1967 — escreve ele em 27 de maio desse
ano, quando já estava há mais de um quarto de século em seu mosteiro no
Kentucky —, é um mundo de estupidez crassa, cega, hiperestimulada, falsa e
enganadora".
Quer no restante
da anotação em pauta, quer nas de igual teor que se sucedem sem conta, Merton
assume posturas tão radicais quanto as dos jovens dissidentes da América, os
poetas da beat generation e participantes de movimentos conexos, que nas
décadas de 1950 e 1960 tudo fizeram para demolir os valores do sonho
capitalista montado sobre as premissas do ódio, da segregação, do materialismo
vulgar e do egoísmo.
Muitos desses
dissidentes, como os poetas Gary Snyder e Lawrence Ferlinghetti, tornaram-se
amigos e correspondentes de Merton. Já as obras nada canônicas de outros, como
Allen Ginsberg e Gregory Corso, ele lia e comentava com o maior interesse. Em
junho de 1966, em "A Midsummer Diary for M.", uma das partes mais
explosivas dos diários, o monge se pergunta se seria adequado, para um trapista
eremita, gostar de Bob Dylan. Mas, superando a dúvida, ouve-o na solidão do
claustro e garante: "Para mim ele significa pelo menos tanto quanto
algumas partes da nova liturgia e, talvez, de certo modo, até mais".
Em 10 de dezembro
do mesmo ano, Merton registra a visita que Joan Baez lhe fizera. Encantado com
a cantora rebelde, durante toda uma tarde entre cervejas e discos e passeios
nos bosques do seu distante mosteiro, descreve-a como "moça muito pura e
honesta", como "criança meiga e viva" que era com toda razão
considerada "uma espécie de santa do movimento pacifista".
O próprio Thomas
Merton, embora recolhido desde 1941 à abadia de Gethsemani, da qual só
costumava sair para escapadas em torno, era a essa altura um ferrenho opositor
da guerra do Vietnam e um líder respeitado e atuante na luta pelos direitos
civis dos negros. Ambos os temas se espraiam com persistente relevo pelas
anotações dos diários. Em 26 de abril de 1967, Merton afirma que essa guerra
tornara os Estados Unidos "mais ricos do que nunca", para em seguida
redigir um desabafo dramático: "Encaro o fato de estar vivendo numa
sociedade imoral, cega e até mesmo, em certo sentido, criminosa, que é
hipócrita, arrogante, virtuosa a seus próprios olhos e incapaz de enxergar seu
verdadeiro estado — de modo geral as pessoas estão 'bem' enquanto não são
perturbadas em suas vidas cômodas e complacentes. Não conseguem ver o preço de
sua 'respeitabilidade'. E eu sou parte disso e não sei o que fazer a respeito —
além de gestos simbólicos e fúteis".
Para os leitores
católicos de meados do século XX, Merton passara a ser, sobretudo após a
publicação de The Seven Storey Mountain (A montanha dos sete
patamares), sua autobiografia, de 1948, que fez enorme sucesso em todo o
mundo, um guia espiritual voltado para a procura de Deus. Quem hoje o aborda
nos diários, seja ou não seja adepto de uma religião qualquer, percebe que seu
discurso, naquela época, incorporou uma mudança de rota, transferindo-se cada
vez mais da esfera do sagrado para as candentes complicações profanas.
A fé do monge do
Kentucky e antigo morador do Greenwich Village nunca sofreu nenhum abalo. Mas
agora, na intimidade desses escritos que nem ele nem ninguém censurava, ei-lo a
descrever-se como "um homem que não tem ideias claras sobre Deus, mas que
apenas anda de um lado para outro à espera de ser fulminado por Deus como se
por um raio". Na condição de escritor que luta com as palavras para dar
sentido e clareza ao pensamento, e de inteligência hipercrítica que jamais
compactuaria com as soluções pastosas de santarrões sem conteúdo, ele afirma
que "é desastroso falar de Deus". E, não ocultando seus conflitos,
nem mesmo os de ordem sentimental, acrescenta: "Tanto Deus como eu estamos
perdidos. E isso é o começo de tudo".
A repulsa pelos
Estados Unidos torna-se mais compreensível quando se sabe que Merton, nascido
na França em 31 de janeiro de 1915, só se radicou em solo americano já por
volta dos 20 anos, depois de uma passagem por Cambridge e com uma boa formação
europeia. Ora provinda da percepção de injustiças, ora motivada por ostentações
de riqueza, tal repulsa é um dos fatores que o levam a idealizar a América
Latina como região quase virgem, cheia de contradições e problemas, mas a seu
ver ainda imune à religião do dinheiro. Insatisfeito com os rigores do abade,
dom James Fox, que nunca o deixa sair para grandes voos mundanos, e aborrecido
com admiradores incômodos que o assediavam cada vez mais no mosteiro, Merton
registra várias vezes seu desejo de se mudar para o Chile, a Nicarágua ou o
México, em busca de maior solidão e de realidades menos ofensivas para sua sensibilidade
de artista.
Antes de entrar
para o ordem dos trapistas, em 10 de dezembro de 1941, Merton fez uma viagem a
Cuba, que ficaria como sua única experiência direta dos latinos e da qual
talvez se origine o interesse crescente que
nutriu por eles. Datado de fevereiro a maio de 1940, o "Cuban Interlude",
que descreve essa viagem, integra o primeiro volume dos diários e é uma
perfeita ilustração dos contrastes que ele supunha existir entre as duas bandas
da América.
As igrejas
arruinadas, porém com marcas de devoção autêntica e humilde, os bares sempre
bem abertos que se prolongam nas ruas, os risos hospitaleiros, a displicência e
as espertezas e o colorido tropical dos cubanos dão um banho de simplicidade e
pureza na sofisticação do inquieto viajante, que saíra de Cambridge para
concluir seus estudos em Columbia e aí fazer o mestrado em Letras com uma tese
sobre a poesia de William Blake. "Havana — escreve Merton — não é menos
barulhenta que Nova York. Mas é menos cruel e preocupada. É um lugar mais feliz
e mais bonito e mais louco que, por estranho que pareça, não tem nada da
grosseria e brutalidade de Nova York, nada da precipitação e amargor de Nova
York, nada da vulgaridade de Nova York, exceto o tanto que a própria Nova York
e Miami já exportaram para Cuba".
Lugar idílico de
fuga para a falta de empatia de Merton com a América triunfalista do Norte,
todo o vasto rincão ao sul do dólar tornar-se-ia para ele ainda mais cativante
pela leitura sistemática de seus muitos poetas, como Cesar Vallejo, Octavio
Paz, Pablo Neruda e Ernesto Cardenal. Este último, que o teve como mestre de
noviços quando passou pelo mosteiro de Gethsemani, permaneceu para sempre um
grande amigo e foi um elo de ligação do monge com o mundo literário da América
hispânica. O pendor de Merton pelos latinos, não raro associado a críticas à
política de Washington em relação à área, acabou por estender-se ao Brasil,
onde 41 de seus livros foram publicados na época em que seu sucesso se fez
notar com mais força. Além de registrar a correspondência trocada com
brasileiros como dom Helder Câmara, Alceu Amoroso Lima e a irmã Maria Emmanuel de
Souza e Silva, freira beneditina de Petrópolis que traduziu a metade desses
livros, os diários se referem à grande atração que ele sentia pelos nossos poetas, em especial Bandeira, Drummond
e Jorge de Lima, os quais lia no original.
A partir de 1963,
quando o trabalho de escritor o absorvia de todo, com a ininterrupta encomenda
de artigos e a constante publicação de seus livros em várias partes do mundo,
Merton pôde eximir-se de muitas das rotinas monásticas ao montar uma espécie de
escritório campestre numa casinhola afastada do corpo principal da abadia. Três
anos depois, foi autorizado a se mudar para esse tosco eremitério no mato,
onde, a princípio sem luz e até sem água encanada, pretendia devotar-se à sua
busca de Deus na solidão mais completa. "A solidão é uma revolta e uma
aceitação do absurdo", escreve ele nessa fase, em 18 de junho de 1966,
quando lia com agrado os existencialistas, principalmente Camus, e autores das
mais diversas vertentes então na ordem do dia, de Pavese a Marcuse, de Artaud e
Faulkner a Bachelard e Lévi-Strauss.
Na nova vida do
eremita, que então passava dos 50 anos e aos 26 se fizera monge, quatro tópicos
se evidenciam nas anotações do diário: as desconfianças quanto ao monasticismo
pétreo e a esperança de uma via ecumênica; uma abertura cada vez maior para as
tradições espirituais do Oriente; o deslumbramento com a natureza; e a
experiência no amor por M., a mulher que o desequilibra no voto de castidade e
o faz atravessar uma crise na própria compreensão do amor por Deus.
Em 9 e 11 de junho
de 1967, quando conta estar relendo O castelo de Kafka, Merton diz que
esse romance é "um tratado irônico de eclesiologia", pois
"descreve exatamente a vida na Igreja Católica", com sua rígida estrutura
de mando e "a criação de um mundinho de mistério pseudosobrenatural de
gabinetes curiais dos quais emanam instruções, recompensas e advertências
incompreensíveis". A vida de castelo, cuja "angústia e alienação
neurótica Kafka descreve tão sutilmente", não se resume para ele, de
resto, à obediência intramuros dos religiosos: encontra-se também "na
General Motors, no Pentágono, na Madison Avenue e no Kremlin", este último
um dos alvos frequentes de seus clamores ante o totalitarismo, um crime contra
o ser humano e o que nele sobrevive como a parte divina.
Com a mesma
intensidade com que se rebela contra a estrutura ainda fechada da Igreja,
Merton se abre para as correntes islâmicas, em particular o sufismo, e pouco a
pouco se torna, de tanto ler sobre o assunto, um especialista ocidental em
zen-budismo. Sua visão somatória, embora se aproximasse das decisões tomadas
pelo Concílio do Vaticano II, revela-se porém mais profunda que as regras de
atualização e reforma originárias de Roma. O ecumenismo de Merton, que ele já
punha em ação há vários anos, nas suas relações com pessoas das convicções mais
diversas, leva-o a conhecer no eremitério uma dilatação do sagrado. Do respeito
votado às tradições extrínsecas, como se todas as religiões fossem a mesma,
segundo o axioma de seu mestre William Blake, o monge passa ao respeito pela
vida temporal das espécies, perdendo até a consciência de si — a consciência tirânica
e fictícia do ego — ao absorver-se na contemplação dos animais e das plantas
que cercam sua casinhola feliz.
M. ingressa nos
diários no começo de abril de 1966, tornando-se presença obrigatória até
setembro do mesmo ano, quando então passa a surgir em ocasiões esporádicas e
sempre mais esbatidas. Porém, durante todo um semestre, o amor por essa moça,
enfermeira de um hospital de Louisville onde ele se internara para uma operação
na coluna, leva o grande recluso a cometer pequenas transgressões e sandices,
como qualquer adolescente enfeitiçado, para burlar a vigilância monacal a fim
de comunicar-se ou encontrar-se com ela. Graças à conivência de amigos, os encontros
não são poucos, e chegam à intimidade mais próxima. Um ano depois, em 10 de
abril de 1967, já liberto do ardor dessa paixão, Merton comenta: "Foi bom
para mim (nós) passar pela tormenta; era o único meio de aprender uma verdade
que de outro modo seria inacessível".
Em 11 de maio do
mesmo ano, ele deixa por escrito, no próprio corpo dos diários, uma instrução
para que as quase 4 mil páginas desses textos tão pessoais, caso viessem a ser
publicadas um dia, não o fossem senão 25 depois de sua morte. E acrescenta não
querer que o caso com M. seja mantido em sigilo, pois foi parte importante de
sua vida e, como ele mesmo escreve, "mostra minhas limitações, bem como um
lado meu que é — bem, que precisa ser conhecido também, porque é parte de
mim".
A partir de
janeiro de 1968, com a eleição de um novo abade, dom Flavian Burns, para
Gethsemani, a situação de Thomas Merton muda completamente e ele é autorizado a
viajar ao Alasca, à Califórnia e à Ásia. Em outubro, embarca para o Oriente.
Deveria participar de um seminário com lideranças católicas e de um grande
encontro ecumênico, além de estabelecer contatos com monges e dirigentes
budistas. Nos dias 4, 6 e 8 de novembro, entrevista-se em Dharamsala, na Índia,
com o atual Dalai-lama.
Os diários,
iniciados em 2 de maio de 1939 em Nova York, só se interrompem bruscamente em 8
de dezembro de 1968 em Bangcoc. Dois dias mais tarde, após ter feito na capital
tailandesa uma palestra intitulada "Marxismo e perspectivas
monásticas", Merton se recolheu para a sesta e, eletrocutado por um
ventilador com defeito, morreu sozinho em seu quarto. Estava com 53 anos. Numa
anotação datada de 14 de setembro de 1967, ele havia profetizado: "Espero
morrer por volta dos 56 ou 57, cansado apenas de tanta estupidez"2.
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Nota: O centenário de nascimento de Thomas
Merton foi comemorado em dezembro de 2015. Nos meus guardados, achei apenas uma
cópia deste artigo, sem nenhuma data, recorte ou qualquer indicação de onde ele
foi publicado. O texto se baseia em minha própria tradução de Merton na
intimidade, Sua vida em seus diários (Rio: Fisus, 2001).
1 Leonardo Fróes, jornalista, poeta, tradutor. Desde os 18 anos é jornalista, mais tarde foi redator do Jornal do Brasil, O Globo e também da Encyclopaedia Britannica. No Jornal da Tarde, de São Paulo, assinou por dez anos, a partir da década de 1970, a coluna Verde. Nessa época, foi um dos primeiros a difundir no Brasil a consciência ecológica. Viveu durante alguns anos em Nova Iorque e em alguns países europeus. A tradução constitui sua principal atividade profissional . Traduziu para o português livros de William Faulkner, Malcolm Lowry, D. H. Lawrence, Tagore, George Eliot, Lawrence Ferlinghetti etc. Traduziu também livros de especialistas em ciências da natureza, como os do ornitólogo Helmut Sick e o mirmecólogo Edward Osborne Wilson. Desde a década de 1970 recolheu-se em Petrópolis, onde viveu por muitos anos num sítio que reflorestou e que mantém até hoje. Como crítico literário e ensaísta, além de ter contribuído e de esporadicamente continuar contribuindo com jornais, esteve ligado também à revista Piracema como subeditor e como editor na Fundação Nacional de Arte.
2 De acordo com a vontade do autor,
os sete volumes de The Journals of Thomas Merton só foram publicados,
pela Harper San Francisco, entre 1995 e 1998. Em 1999, saiu a edição compacta
de uma seleção de passagens, The Intimate Merton, His Life from His Journals,
organizada por Patrick Hart e Jonathan Montaldo. Após ter lido a íntegra dos
sete volumes, traduzi a edição compacta, a convite dos saudosos amigos Kitty e
Armando Erik de Carvalho, cuja editora Fisus publicou-a no Rio, em 2001, com o
título de Merton na intimidade, sua vida em seus diários.
Um comentário:
Thomas merton, uma grande luz na escuridao.
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