29 fevereiro 2016

O verdadeiro recolhimento quaresmal

“O verdadeiro recolhimento conhece-se pelos efeitos: paz, silêncio interior, tranquilidade de coração. O espírito recolhido é quieto e desprendido, ao menos em suas profundezas. É impassível, com as paixões momentâneas em repouso. (...) Mas como os frutos do recolhimento vêm da humildade e da caridade, e de outras virtudes cristãs fundamentais, é claro que não pode haver recolhimento genuíno senão quando essas virtudes concorrem para dar-lhe substância e realidade.
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O recolhimento é mais do que entrar dentro de nós mesmos, e nem significa necessariamente a recusa ou a expulsão do mundo exterior.

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Outro resultado do recolhimento é fazer-nos presentes a Deus e a nós mesmos em Deus.(...) E é só na presença de Deus que nos revelamos em toda a verdade. Porque é então que, vendo a Deus em sua luz, vinda na obscuridade da fé, também vemos, à mesma claridade, como somos diferentes do que pensamos ser em nossa ambição e vaidade.

Aqui o recolhimento colore-se de compunção e daquilo que os Padres chama de ‘santo temor’. Temor é o conhecimento de nós mesmos em presença da santidade de Deus. É o conhecimento que temos de nós diante do seu amor, ao ver como estamos longe do que esse amor queria.

(...)

Esse temor é absolutamente necessário para que se preserve o nosso recolhimento de degradar-se numa falsa doçura e presunção, que se supõe segura da graça, e cessa de temer a ilusão, comprazendo-se com o pensamento da sua virtude e alto grau de oração. Tal complacência cai imperceptivelmente, como uma cortina impenetrável, entre nós e Deus, que se vai, deixando conosco uma terrível ilusão.

Quanto mais intenso, forte e prolongado o nosso recolhimento, tanto maior o perigo de cair nessa ilusão. Com o tempo vai-se tornando fácil recolher-nos sem, de fato, entrarmos em contato com Deus. Esse recolhimento não passa de um artifício psicológico. É um ato de introspecção, que se aprende sem esforço. Ele abre para um sombrio, confortável e silencioso quarto interior, onde nada acontece, nada perturba, porque se conseguiu achar a chave que desliga, em sua origem, toda a atividade intelectual. Isto não é oração, e embora possa ser coisa tranquila e benéfica por um pouco de tempo, causará o maior dano, se nos apegamos e o levamos longe demais.

Recolhimento sem fé confina o espírito numa prisão privada de luz e de ar. Um ascetismo interior não deve terminar por fechar-nos em tal cárcere. Só faria, com isto, anular os fins da graça divina. Não é pondo limites à atividade da alma que a fé nos estabelece em recolhimento, mas na remoção de todas as limitações da nossa inteligência e vontade, livrando a mente da dúvida e a vontade da hesitação, de modo que o espírito, livrado por Deus, mergulha nas profundezas da sua invisível liberdade”.

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 5ª Ed. 1968, pág. 180, 181 e 185 a 187

4 comentários:

Unknown disse...

Mais uma vez o iluminado Merton nos assombra com sua lucidez! Maravilhoso texto!

Unknown disse...

Desde que assumi como o novo coordenador da SAFTM, dando um merecido descanso ao meu antecessor, Cristóvão Júnior, passei a fazer as postagens no blog e consequentemente nas reflexões que os assinantes recebem toda semana. Por isso parei de comentar, pois acho desconfortável cometar minhas próprias seleções de Thomas Merton. Porém vou fazer uma exceção:

Esta postagem me lembrou da lucidez de Merton como bem observou o Fred Félix. Já naquela época, Merton havia percebido algo muito errado na espiritualidade de então, que continua tremendamente errada hoje. É como se a espiritualidade moderna tivesse se tornado materialista, por mais paradoxal que isso possa parecer. Hoje como então, o que muitas pessoas chamam de espiritual, não passa de humanismo: Elas desejam um mundo melhor, uma vida feliz, melhores relacionamentos... Tudo muito justo e nobre; não há problema com isso. Mas elas não pensam na experiência de Deus nos termos Dele, ou para Ele. A espiritualidade moderna faz de Deus o meio para um fim, e não o fim propriamente dito. Elas são motivadas a buscar Deus porque isso trará este ou aquele benefício humano. Não entendem que esse "porque" implica que o fim é o benefício humano e Deus, apenas um meio. Quem nos faz essa pergunta: Você busca Deus para que? Não entendeu nada! Esse tipo de pergunta não faz sentido e portanto não pode ser respondida. Preferível seria inverter a lógica: "busco um mundo melhor, busco uma vida mais plena e feliz, busco um melhor relacionamento, etc, etc.. para buscar Deus.

Unknown disse...


"...por isso parei de comentar, pois acho desconfortável comentar minhas próprias seleções de Thomas Merton..." diz você, Fernando Paiser, em seu comentário. Mas, que bom que não ficou ali, mas uma intuição, certamente
vinda do alto o levou a, desta vez, "fazer uma exceção". Bendita exceção
que me fez tanto bem ler, não por estar de acordo com o que comenta, mas
por já haver experimentado o mesmo sentimento ao ler as palavras de Merton, em Novas Sementes de Contemplação, quando diz :..." minha preocupação principal não deve ser a procura do prazer ou do sucesso, da saúde ou
da vida, do dinheiro ou do repouso, [...]menos ainda seus opostos : dor, fracasso, enfermidade, morte. Mas, em todos os acontecimentos, meu único desejo e minha alegria seja reconhecer : "aqui está o que Deus quis para
mim. Nisso é que encontro o Seu amor, e aceitando o que Ele me envia, é que posso dar-Lhe de volta esse amor e a mim mesmo, inteiramente. Pois ao dar-me a Ele, encontrá-Lo-ei, e Ele é a vida eterna". ( Ed.Vozes, 1963, pág.33 e 34).
Obrigada, Fernando, por haver resolvido "fazer uma exceção" ...que o Espírito Santo, iluminando-o, o encontre sempre com o coração aberto para acolher Suas inspirações, na qual somos todos beneficiados.
vida, do dinheiro ou do repouso, nem mesmo de coisas como a virtude ou a sabedoria

Unknown disse...

Acrescentando ao comentário acima, uma palavrinha que ficou faltando ao digitar : " [ ... ] não somente por estar de acordo" ...

E retirando a última frase "vida, do dinheiro ou do repouso, nem mesmo ..."
que está fora de lugar, e portanto, sobrando.