29 dezembro 2014

Não aprisione o espírito


"Quanto mais intenso, forte e prolongado o nosso recolhimento, tanto maior o perigo de cair nessa ilusão. (veja o artigo anterior). Com o tempo vai-se tornando fácil recolher-nos sem, de fato, entrarmos em contato com Deus. Esse recolhimento não passa de um artifício psicológico. É um ato de introspecção, que se aprende sem esforço. Ele abre para um sombrio, confortável e silencioso quarto interior, onde nada acontece, nada perturba, porque se conseguiu achar a chave que desliga, em sua origem, toda a atividade intelectual. Isso não é oração, e embora possa ser coisa tranquila e benéfica por um pouco de tempo, causará o maior dano, se nos apegamos e o levamos longe demais.

Recolhimento sem fé confina o espírito numa prisão privada de luz e de ar. Um ascetismo interior não deve terminar por fechar-nos em tal cárcere. Só faria, com isto, anular os fins da graça divina. Não é pondo limites à atividade da alma que a fé nos estabelece em recolhimento, mas na remoção de todas as limitações da nossa inteligência e vontade, livrando a mente da dúvida e a vontade da hesitação, de modo que o espírito, livrado por Deus, mergulha nas profundezas da sua invisível liberdade."

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág.186-187

23 dezembro 2014

Natal: alegria infinita


Sieger Köder, São Francisco celebra o Natal no povoado de Greccio
"Estou certo de que, onde o Senhor vê o pontinho de pobreza e extenuação e desamparo a que o monge é reduzido, o solitário e o homem de lágrimas, Ele então deve descer e vir e nascer, lá nessa angústia, e torná-la um ponto constante de alegria infinita, uma semente de paz no mundo."

Merton na Intimidade (Editora Fissus, Rio de Janeiro), 2001, pág. 228

15 dezembro 2014

Temor

"É só na presença de Deus que nos revelamos em toda a verdade. Porque é então que, vendo a Deus em sua própria luz, vinda da obscuridade da fé, também vemos, à mesma claridade, como somos diferentes do que pensamos ser em nossa ambição e vaidade.

Aqui o recolhimento colore-se de compunção e daquilo que os Padres chamam de “santo temor”. Temor é o conhecimento de nós mesmos em presença da santidade de Deus. É o conhecimento que temos de nós diante do seu amor, ao ver como estamos longe do que esse amor queria. Ele sabe quem é Deus e quem somos nós!

Mas um  temor “santo” não pode temer o amor. O que ele teme é a discrepância entre si e o amor, e corre a esconder-se no abismo de luz, que é o amor de Deus e a sua perfeição.

Esse temor é absolutamente necessário para que se preserve o nosso recolhimento  de degradar-se numa falsa doçura e presunção, que se supõe segura da graça, e cessa de temer a ilusão, comprazendo-se com o pensamento da sua virtude e alto grau de oração. Tal complacência cai imperceptivelmente, como uma cortina impenetrável, entre nós e Deus, que se vai, deixando conosco uma terrível ilusão."

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág.186

10 dezembro 2014

Eu já vivi

“31 de janeiro de 1960. Nunca pensei que uma coisa dessas, o aniversário dos meus 45 anos, fosse acontecer. No entanto, aqui está ele. Por que será que eu sempre andei meio convencido de que iria morrer jovem? Talvez por uma espécie de superstição — o medo de admitir uma esperança de vida que, se admitida, poderia ter de ser desfeita. Mas agora 'eu já vivi' uma boa parte da vida, e, quer o fato seja importante quer não, nada pode alterá-lo. É certo, infalível — embora isso também seja apenas uma espécie de sonho. Se eu não chegar aos 65, importa menos. Posso relaxar. A vida é uma dádiva com a qual estou satisfeito: não maldigo o dia em que nasci. Pelo contrário, se eu não tivesse nascido, nunca teria tido amigos para eu gostar deles e eles gostarem de mim, nunca cometeria os erros com os quais se aprende, nunca veria novos países. Já o que eu possa ter sofrido é de somenos importância e, com efeito, parte do grande bem que a vida tem sido e, espero, há de continuar a ser. Afinal, subitamente me dou conta de que uma pessoa de 45 anos ainda é jovem”.

Merton na Intimidade (Editora Fissus, Rio de Janeiro), 2001

01 dezembro 2014

Nossas livres escolhas


Enquanto vivemos esta vida, ao mesmo tempo somos e não somos. Vivemos em transformação contínua, e todavia é sempre a mesma pessoa que muda. Até as mudanças lhe exprimem a personalidade, a desenvolvem e confirmam no que ela é.

Um homem é um ser livre que vive sempre a transformar-se. Essa mudança não é jamais indiferente. Mudamos sempre para melhor ou para pior. O nosso desenvolvimento é medido por nossas livres escolhas, e acabamos à imagem dos desejos que temos.

Se eles tendem àquilo que somos destinados a possuir, a realizar e a vir a ser, então nós nos tornaremos aquilo que devemos ser.

Mas, se eles tendem para coisas que não têm sentido para o nosso crescimento espiritual, perdendo-se em sonhos, em paixões ou em mentiras, seremos falsos a nos mesmos e, no fim, a nossa vida proclamará que mentimos a Deus, aos outros e a nós mesmos. Seremos estranhos tanto a nós próprios como a Deus.

No inferno não há recolhimento. Os réprobos são exilados não só de Deus e dos outros, mas de si mesmos.

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág.181-182

24 novembro 2014

Aprender a perdoar

"Querem conhecer a Deus? Aprendam a compreender as fraquezas e imperfeições dos irmãos. Mas, como se pode conhecer a fraqueza alheia, se não se reconhece a própria? Como se pode ver o sentido das próprias limitações se não se recebeu de Deus a misericórdia que nos dá o conhecimento Dele e de nós mesmos? Não basta perdoar: é preciso perdoar com humildade e compaixão. Perdoar sem humildade é um escárnio, que nos supõe melhores do que os outros. Jesus desceu aos abismos da nossa degradação a fim de perdoar-nos, após descer, em certo sentido, mais baixo do que nós todos. Não nos compete perdoar a outros do alto de tronos sublimes, como se fôssemos deuses a olha-los de cima dos céus. Nosso dever é perdoá-los nas chamas do seu próprio inferno, pois Cristo, através do nosso perdão, desce mais uma vez para apagar a chama vingadora. Mas Ele não o pode fazer se não perdoarmos com a compaixão do Cristo. Ele não pode amar sem sentimento e sem coração. Seu amor é humano e divino ao mesmo tempo, e a nossa caridade será uma caricatura do seu amor se ela pretende ser apenas divina, e não consente em ser também humana."

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág.177-178

17 novembro 2014

A fonte da alegria

"Cada pecado é uma violação do amor de Deus, e a justiça divina torna-lhe impossível uma reparação perfeita a não ser pelo amor. Ora, o amor é o maior dom de Deus aos homens. A caridade é a nossa mais alta perfeição e a fonte de toda a nossa alegria. Ela é o livre dom da misericórdia. Cumulando-nos da divina caridade e chamando-nos a amar a Deus como Ele nos amou primeiro, e a amar os outros como Deus a nós, a sua misericórdia permite-nos oferecer plena satisfação à justiça. Esta pode, assim, melhor satisfazer-se com os efeitos da própria misericórdia."

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág.177

10 novembro 2014

Experimentar a pobreza alheia

"A misericórdia de Deus está à nossa disposição, quando a quisermos; basta ser misericordioso com o outro. Pois é a bondade de Deus que age através de nós, quando Ele nos leva a tratar o próximo como Deus nos trata. Sua misericórdia santifica a nossa pobreza, quando sentimos compaixão pela dos outros, como se fosse a nossa. E isso é um reflexo criado da divina compaixão nas nossas almas. Assim, ela destrói os nossos pecados, no mesmo ato em que esquecemos e perdoamos os pecados alheios.

Tal compaixão não se aprende sem sofrimento. É impossível encontrá-la numa vida complacente, em que platonicamente esquecemos os erros alheios, sem nenhum senso do nosso próprio entrosamento no mundo do pecado. Se queremos conhecer a Deus, aprendamos a entender as fraquezas, pecados e imperfeições dos outros, como se nossas fossem. Temos de experimentar a sua pobreza, como Cristo fez a experiência da nossa."

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág.176

03 novembro 2014

Bem-aventurados os que choram

"Pode ser verdade? Pode haver maior infortúnio do que experimentar a nossa insuficiência, miséria e desesperança, e conhecer que não somos, absolutamente, dignos de nada? É, porém, uma bênção ver-se reduzido a esses extremos, quando neles podemos encontrar a Deus. Até chegarmos ao fundo do abismo, ainda há para nós algo a escolher entre tudo e nada. Ainda há qualquer coisa no meio. Podemos ainda fugir à decisão. Quando somos reduzidos aos extremos não existe mais evasão. A escolha torna-se terrível. Ela é feita em meio às trevas, mas com uma intuição que é insuportável, tal a sua clareza angélica: é quando nós, que fomos destruídos e parecemos estar no inferno, miraculosamente escolhemos a Deus!"

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág.173-174

27 outubro 2014

Misericórdia

“Quando estou fraco, é então que estou forte” (II Cor.12,10).

É a nossa fraqueza que nos abre os Céus, porque nos atrai a misericórdia de Deus e Lhe conquistou o amor. A nossa infelicidade é a raiz de toda a nossa alegria. Até o pecado representou um involuntário papel na salvação dos pecadores, pois a infinita bondade de Deus não se pode impedir de tirar o maior bem do maior mal. O pecado foi destruído por meio do pecado daqueles que pensavam poder destruir Cristo. O pecado não pode nunca fazer nada de bom. Não pode nem mesmo destruir-se a si mesmo, o que seria de fato um grande bem. Mas o amor de Cristo por nós, e a misericórdia de Deus, destruiu o pecado, tomando sobre si todas as nossas faltas e pagando o preço devido por elas. Assim a Igreja canta que Cristo morreu na árvore da Cruz para que a vida pudesse ressurgir do mesmo tronco donde primeiro nascera a morte.

O conceito cristão de misericórdia é, portanto, a chave da transformação de todo um universo em que o pecado ainda parece reinar. Porque o cristão não escapa do mal, nem é dispensado de sofrer, nem, ainda, liberto da influência e dos efeitos do pecado. Também não é impecável. Ele pode, infortunadamente, pecar. Não é completamente libertado do mal. A sua vocação, todavia, é de livrar do mal o mundo inteiro, e de transformá-lo em Deus: pela oração, penitência, caridade, e sobretudo, pela misericórdia. Deus, que é todo santo, não contente de fazer misericórdia conosco, pôs também a sua misericórdia em mãos dos pecadores possíveis que somos, para que pudéssemos escolher entre o bem e o mal, vencer o mal com o bem, e obter para nós mesmos a misericórdia que tivermos com os outros."

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág.172-173

20 outubro 2014

Sinceridade: uma última palavra

A nossa sinceridade em face de nós mesmos, de Deus e dos outros homens, é proporcional à nossa capacidade de amor sincero. E a sinceridade do nosso amor depende, em larga escala, da nossa capacidade para crermo-nos amados (...). Para amar sinceramente, e com simplicidade, devemos primeiro vencer o medo de não ser amados. E isso não pode ser à custa de alguma ilusão que nos force a crer que somos amados quando na verdade não somos. Devemos despir as ilusões que nós fazemos a nosso respeito, reconhecer francamente a nossa imperfeição, e descer às profundezas do nosso ser até à realidade básica que existe em cada um, aprendendo a ver que, afinal, e, a despeito de tudo, somos amáveis!

Todo o problema da sinceridade é, pois, fundamentalmente, uma questão de amor e de medo. O homem egoísta e mesquinho, que ama pouco, e teme muito não ser amado, não pode ser profundamente sincero, embora aparente, às vezes, um caráter superficialmente franco. Em seu íntimo, ele será sempre envolto em falsidade. Mesmo nas suas melhores e mais sérias intenções, não deixará de enganar a si mesmo. Nada do que ele diz ou sente sobre o amor, humano ou divino, pode merecer crédito, até que o seu amor seja ao menos purificado dos temores mais baixos e mais irrazoáveis.

A sinceridade é, talvez, a mais vitalmente importante qualidade da verdadeira oração. Ela é a única prova certa de nossa fé, da nossa esperança e do nosso amor de Deus (...). O mais importante na oração é que nos apresentemos como somos, diante de Deus, tal qual Ele é. Isso é impossível sem um generoso esforço de recolhimento e de conhecimento de si mesmo. Mas se somos sinceros, a nossa oração não será jamais infrutífera. A própria sinceridade nos põe em instantâneo contato com o Deus de toda a verdade.

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág. 168-171

14 outubro 2014

Sinceridade: Verdade e Amor

"No fim das contas, o problema da sinceridade é um problema de amor. Sincero não é tanto o homem que vê a verdade e a manifesta tal qual a vê, mas o que lhe tem um puro amor. Mas, a verdade é mais do que uma abstração. Ela vive, e incorpora-se aos homens e às coisas, que são reais. Assim, não se deve procurar o segredo da sinceridade num amor filosófico da verdade abstrata, mas num amor por pessoa e coisas concretas, um amor de Deus, aprendido na realidade ambiente.

É difícil exprimir em palavras a importância dessa noção. O problema fundamental do nosso tempo não é falta de conhecimento, mas falta de amor. Se os homens simplesmente se amassem entre si, não teriam dificuldade em confiar-se reciprocamente, e em partilhar uns com os outros a verdade. Se todos tivessem caridade, achariam a Deus facilmente. "Pois a caridade é de Deus e quem quer que ama nasce de Deus e conhece a Deus" (I Jo, 4,7).

Se os homens não amam, é porque aprenderam, na sua mais remota infância, que não eram amados. A duplicidade e o cinismo do nosso tempo pertence a uma geração que é bem consciente, desde o berço, de não ser desejada por seus pais."

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p.171

06 outubro 2014

Sinceridade

"Como nos é difícil ser sinceros uns com os outros, quando nem nos conhecemos a nós mesmos nem uns aos outros. A sinceridade é impossível sem humildade e amor sobrenatural. Não posso ser cândido com os outros, se não me compreendo a mim mesmo e se não estou preparado a fazer todo o possível para compreendê-lo.

Mas a minha compreensão dos homens é sempre encoberta pelo reflexo de mim mesmo, que não posso deixar de ver nos outros.
 
Exige muito mais coragem do que se pensa para ser perfeitamente simples com os outros. A nossa franqueza é muitas vezes estragada por uma oculta barbárie, que é filha do medo.
 
A falsa sinceridade tem muito a falar, porque ela tem medo. Só a verdadeira candura pode dar-se ao luxo de ser silenciosa. Ela não tem de enfrentar qualquer ataque prévio. Tudo o que ela possa ter a defender, o pode ser com uma perfeita simplicidade.

Os raciocínios de algumas pessoas piedosas são muitas vezes insinceros, duma insinceridade proporcional à sua cólera. Por que nos irritamos por causa do que nós cremos? Porque na realidade, não cremos. Ou, então, o que pretendemos defender como "verdade" não passa, efetivamente, da nossa estima própria. Um homem de sinceridade interessa-se menos em defender a verdade, do que estabelecê-la claramente, porque ele pensa que a verdade claramente vista se incumbirá ela mesma de sua defesa."

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág. 163-164

29 setembro 2014

Uma história sobre Santa Teresinha

"Tarde da noite. A maior parte dos cafés de Paris cerrou suas portas, baixou seus postigos, trancando-se para o lado da rua. Luzes refletem-se brilhantemente nos passeios úmidos e vazios. Um táxi para para pegar um passageiro e parte de novo e a luz vermelha da traseira desaparece ao dobrar da esquina.
 
O homem que acaba de apear-se segue um empregado pela porta giratória até o vestíbulo de um dos maiores hotéis de Paris. Sua mala de mão pintalga-se de etiquetas europeias com os nomes de hotéis de que existiam nas grandes cidades europeias antes da Segunda Guerra Mundial. Mas o homem não é um turista. Vê-se logo que é um homem de negócios e importante. Não é essa espécie de hotel procurada por meros voyageurs de comerce. Um francês, evidentemente, e caminha através do vestíbulo como um homem acostumado a hospedar-se nos melhores hotéis. Para um instante, procurando no bolso algum dinheiro miúdo e o empregado vai à sua frente até o elevador.
 
Sente, de súbito o viajante que alguém está olhando para ele. É uma mulher e, para espanto seu, traz hábito de monja.
 
Se conhecesse algo a respeito dos hábitos usados pelas diferentes ordens religiosas, reconheceria a capa branca e o burel castanho das Carmelitas Descalças. Mas como um homem na sua posição haveria de saber alguma coisa a respeito das Carmelitas Descalças? É demasiado importante e demasiado atarefado para se preocupar com monjas e ordens religiosas... ou com igrejas a propósito, embora ocasionalmente vá à missa pró-forma.
 
O mais surpreendente de tudo é que a freira está sorrindo e está sorrindo para ele. É uma jovem irmã, com um brilhante e inteligente rosto de francesa, cheio de candor duma criança, cheio de bom senso e seu sorriso é um sorriso de franca e indisfarçada amizade. Instintivamente leva o viajante a mão ao chapéu, depois torna a voltar-se e dirige-se apressado à gerência, garantindo a si mesmo que não conhece freira alguma. Ao assinar o registro, não pode deixar de lançar uma olhadela para trás. A freira já fora embora.
 
Largando a pena, pergunta ao empregado:
 
— Quem é essa freira que acaba de passar por aqui?
— Peço-lhe perdão, cavalheiro, mas que é que o senhor diz?
— Aquela freira... quem é, afinal? Aquela que acaba de sair e sorriu para mim?
 
O empregado arqueia os supercílios.
 
— O senhor está enganado, cavalheiro. Uma freira, num hotel a esta hora da noite? Freiras não andam vagando pela cidade sorrindo para homens!
— Sei disso. E por isso mesmo gostaria que o senhor me explicasse o fato de haver uma aparecido e sorrindo para mim agorinha mesmo, aqui neste vestíbulo.
 
O empregado encolhe os ombros.
 
— O senhor foi a única pessoa que entrou ou saiu nesta última meia hora.

Não muito tempo depois, o viajante, que viu uma freira no hotel parisiense, não era mais um importante industrial francês e sabia de algo a respeito de hábitos religiosos. Na realidade usava um... Tornara-se monge trapista numa abadia do sul da França.
 
(...) O que se deve salientar nesta história é que ela é verdadeira. Aquele irmão leigo vive hoje na abadia de Aiguebelle e a razão de achar-se ali pode ser rastejada até o fato de haver entrado numa noite num hotel de Paris e ali haver visto uma freira sorrindo para ele, embora o empregado lhe afirmasse que nenhuma freira ali se achava.
 
Poucos dias depois vira um retrato da mesma freira na casa de uns amigos. Disseram-lhe que se chamava Santa Teresa do Menino Jesus".

Prólogo de Águas de Siloé, Thomas Merton (Editora Itatiaia), 1957


Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face (1873-1897), Monja Carmelita e Doutora da Igreja, cuja memória celebramos no dia 1º de Outubro


Há uma reflexão extraída deste livro no blog:

23 setembro 2014

Despojamento da vontade e renúncia

“Se não temos gosto algum pelas coisas de Deus, podemos ao menos desejar esse gosto, e, se o pedirmos, ser-nos-á dado. Mas é preciso, ao mesmo tempo, que nos recusemos o gosto por tudo aquilo que mata o desejo de Deus.

Isso nos leva a outro elemento que determina a medida do amor por Deus: a renúncia a si mesmo. A caridade é recebida em proporção da recusa de qualquer outro amor. Quem mais possui no reino do espírito é quem menos ama na ordem da carne. Digo “quem menos ama”, e não quem menos come, ou menos bebe, ou menos dorme; um bom marido pode ter mais amor por Deus, do que um monge medíocre. Mas a prova, em cada caso, é o despojamento da vontade e o desejo de renunciar completamente a sim mesmo para obedecer a Deus. Em resumo, pois, a medida da nossa caridade é conforme o nosso desejo; este, por seu turno, é medido pelos próprios desejos de Deus, e é quando abjuramos aos nossos, que Deus realiza em nós os Seus.”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 158 e 159.

16 setembro 2014

Nunca nos será recusado

“Uma vez com o Espírito Santo a habitar no coração, a medida da doação de Cristo será proporcional ao nosso desejo. Porque, ao ensinar a habitação do Seu Espírito de caridade, Jesus sempre nos aconselha a pedir a fim de que possamos receber. O Espírito Santo é o mais perfeito dom do Pai ao homem e, no entanto, é o dom que Ele dá mais facilmente. Há uma porção de coisas menores que, se pedirmos, pode ser que sejam recusadas. O Espírito Santo, porém, nunca nos será recusado.”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 156

09 setembro 2014

O amor escondido no outro

“Muita gente não revela nunca a parte de bem que nela se esconde, até o dia em que lhe damos um pouco do bem, isto é, um pouco da caridade que há em nós.

Somos de tal modo filhos de Deus, que, amando os outros, podemos fazê-los bons e amáveis, a despeito deles mesmos.

O nosso dever é o de tornar-nos perfeitos como é perfeito o nosso Pai celeste (cf. Mt 5,48). Isso significa que não olhamos o mal nos outros, mas lhe damos um pouco do nosso bem a fim de pôr à mostra o bem que Ele neles escondeu.”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 149

01 setembro 2014

Uma calma e definida decisão

“Se uma pessoa não consegue jamais se decidir, jamais se resolver a fazer o que é preciso para seguir uma vocação, não tem provavelmente vocação. Ela pode ter-lhe sido oferecida: mas isso é coisa que não se pode decidir com certeza. Se resiste ou não à graça, o que parece certo é que ela 'não é chamada'. Mas uma calma e definida decisão, que não desanima com os obstáculos nem se quebra ante a oposição, é um bom sinal de que Deus deu a graça de responder ao Seu chamado e que é correspondido.”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 141

25 agosto 2014

Casamento: sinal do amor divino

“Poderíamos melhor compreender a beleza da vocação religiosa se nos lembrássemos de que o casamento é também vocação.
 
(…)

No casamento, o amor de Deus torna-se conhecido e participado sob os véus sacramentalizados do afeto humano. A vocação para o matrimônio é um chamado à sobrenatural união que santifica e propaga a vida humana e estende o reino de Deus no mundo pela criação de filhos, futuros membros de Cristo místico. Tudo o que é mais humano e mais instintivo, tudo o que é melhor nos afetos naturais do homem, é aqui consagrado a Deus e se torna sinal do amor divino e ocasião de graça.”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 136 e 137

18 agosto 2014

Sinais de um chamado

“Sabemos que seguimos nossa vocação quando a nossa alma se vê livre de toda a preocupação consigo mesma e é capaz de procurar a Deus até encontrá-lo, embora possa parecer que não o acha. Gratidão, confiança e liberdade interior, eis os sinais de que achamos a nossa vocação e vivemos de conformidade com ela, ainda que o resto possa parecer que falhou. Isso nos dá a paz em qualquer sofrimento e nos ensina a rir do desespero."

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 127

12 agosto 2014

Realidades superiores

“(...) a vocação humana não pode consumar-se só na ordem da natureza. O homem foi feito para uma realidade maior do que a que ele pode ver com sua inteligência desamparada, para um amor maior do que pode a sua vontade sozinha, e para uma atividade moral mais elevada do que a prudência humana possa ter disposto.”


Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 122

04 agosto 2014

Vocação

“Cada um de nós tem a sua vocação. Somos todos chamados por Deus para participar da Sua vida e do Seu reino. Cada um é chamado a ocupar no reino um lugar especial. Se encontrarmos esse lugar, seremos felizes. Para cada um de nós só há uma coisa necessária: cumprir o nosso destino pessoal de acordo com a vontade de Deus, sendo o que Deus quer que sejamos.”


Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 120

29 julho 2014

Equilíbrio, ordem, ritmo e harmonia

“Não podemos ser felizes se pretendemos viver sempre no mais alto grau de intensidade. A felicidade não é questão de intensidade, mas de equilíbrio, de ordem, de ritmo e harmonia.
 
A música é boa não só pelos sons, mas também pelo silêncio que contém: sem a alternância de som e silêncio, não haveria ritmo. Se queremos ser felizes enchendo de ruído todos os silêncios da vida, ser produtivos convertendo todos os lazeres em trabalho e ser reais reduzindo todo nosso ser ao agir, não conseguiremos senão produzir um inferno na terra.”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 117

21 julho 2014

Aceitar-nos como somos

“O valor da nossa atividade depende quase inteiramente da humildade em aceitar-nos como somos. O motivo por que fazemos tão mal as coisas é que não nos contentamos em fazer o que podemos”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 114

14 julho 2014

Em busca de paz

“Todo homem procura, em primeiro lugar, a paz consigo mesmo. Isso é necessário porque não achamos, naturalmente, descanso em nós mesmos. Temos de aprender a comunicar-nos conosco, antes de podermos comunicar-nos com os outros homens e com Deus.”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 109 e 100

07 julho 2014

Pensar e agir

“A minha alma não se descobre senão quando age. Ela deve, pois agir. A estagnação e a inatividade trazem a morte espiritual. Mas a alma não deve projetar-se inteiramente nos efeitos externos da sua atividade. Não preciso ver-me a mim mesmo, eu só preciso ser quem sou. Devo pensar e agir como um ser vivo, mas não devo mergulhar o meu inteiro ser naquilo que penso e faço, nem me procurar sempre na obra que fiz.”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 110

30 junho 2014

O princípio de nossos atos

“É o fogo, e não a fumaça do fogo, que nos aquece. É o navio, e não o seu rastro, que nos leva. Assim também o que nós somos deve ser procurado nas invisíveis profundezas do nosso ser, e não na reflexão exterior dos nossos atos. Devemos encontrar o nosso eu verdadeiro, não na espuma excitada pelo choque do nosso ser com os entes ao redor, mas na alma, que é o princípio de todos os nossos atos.”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 109

23 junho 2014

Disciplina: liberdade espiritual

“Desejar uma vida espiritual é, assim, desejar disciplina. De outro modo, o nosso desejo é uma ilusão. É uma verdade que a disciplina é considerada uma força capaz de levar-nos, por fim, à liberdade espiritual. Entretanto, o nosso ascetismo não nos deveria tornar espiritualmente rígidos, embora flexíveis, porque rigidez e liberdade não se conciliam. Mas a nossa disciplina deve ter um certo elemento de severidade. Do contrário, ela nunca nos livrará das paixões.”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 105

16 junho 2014

Amar num nível mais alto

“Quem ama a Deus mais que do que a si mesmo é capaz de também amar as pessoas e as coisas pelo bem que elas possuem em Deus. Equivale a dizer que ele ama a glória que as coisas rendem a Deus: porque essa glória é o reflexo de Deus na bondade, comunicada por Ele às criaturas. Tal homem é indiferente ao embate das coisas na sua própria vida. Ele só considera as coisas na sua relação à glória de Deus e à Sua vontade. Por maior que seja a sua utilidade e satisfação temporal, ele fica indiferente. Mas, quanto ao valor das coisas em si mesmas, ele não é mais indiferente do que em relação a Deus. Ama-as no mesmo ato em que ama a Deus. Isto é, ama no mesmo ato pelo qual renunciou a elas. E nesse amor que se afirma pela renúncia, ele as recupera num nível mais alto.”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 99

10 junho 2014

Renúncia

"A nossa renúncia é estéril e absurda se a praticamos por motivos errôneos ou, ainda pior, sem motivo válido. Por conseguinte, embora seja verdade que devemos renegar-nos a nós mesmo a fim de aceder a um verdadeiro conhecimento de Deus, é preciso também termos algum conhecimento de Deus e da nossa relação com Ele, para nos renegarmos inteligentemente."

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 97

02 junho 2014

Vida espiritual

“Ter uma vida espiritual é ter uma vida que é espiritual em toda sua inteireza, uma vida em que as ações do corpo são santas por causa da alma, e a alma é santa por causa de Deus que habita e age nela. Quando vivemos essa vida, as ações do nosso corpo são dirigidas a Deus por Deus mesmo e Lhe dão glória, servindo, ao mesmo tempo, para santificarmos a alma.”

Homem Algum é uma Ilha, Thomas Merton (Verus Editora, Campinas), 2003. p. 95

26 maio 2014

Rumo ao Altar de Deus

No dia 26 de maio de 1949, durante a Solenidade da Ascensão do Senhor daquele ano, o jovem Frater Louis (Thomas Merton) era ordenado sacerdote aos 34 anos de idade, na Abadia de Gethsemani. O trecho a seguir foi retirado do início da quarta parte do livro O Signo de Jonas, um importante diário que complementa a atmosfera narrada em A Montanha dos Sete Patamares.

“Minha ordenação sacerdotal foi, sinto, aquele grande segredo para que nasci. Dez anos antes de ser ordenado, quando vivia no mundo e parecia ser um dos homens do mundo menos capazes de ser sacerdote, compreendi subitamente que minha ordenação era, de fato, assunto de vida ou de morte, de céu ou de inferno. Desde o momento em que pude ainda me encontrar com a inescrutável vontade de Deus, minha vocação se tornou clara. Foi uma mercê e um segredo tão exclusivamente meus, que a princípio não pretendia falar dele a ninguém.

Todavia, como ninguém é ordenado sacerdote exclusivamente para si, e desde que meu sacerdócio me faz pertencer não somente a Deus mas a todos os homens, me cabia falar um pouco do que se passava em meu coração aos amigos que compareceram para assistir à minha ordenação. (...).

Antes de tudo, a maior coisa que acontece na ordenação de um sacerdote é a mais simples de todas. É por isso que a Ordem é, ao ser conferida, o mais simples dos sacramentos. O Bispo, sem dizer uma palavra, coloca as mãos sobre a cabeça do ordenado. Depois, pronuncia as palavras da oração e o novo padre recebe a graça e o caráter indelével do sacerdócio. Passa a identificar-se com o Altíssimo Sacerdote, o Verbo Encarnado, Jesus Cristo. Torna-se padre, para sempre.

Deus nunca faz as coisas pela metade. Não nos santifica pedaço por pedaço. Não nos faz sacerdotes ou santos superpondo uma existência extraordinária sobre nossas vidas ordinárias. Toma nossa vida inteira e o nosso ser inteiro e os eleva a um nível supernatural, transformando-os completamente por dentro, mas os deixando, exteriormente, como são: ordinários.

Assim, a graça do meu sacerdócio, a maior de minha vida, foi para mim algo muito maior do que um voo momentâneo acima da planície da vida de todos os dias. Ela transformou permanentemente minha vida ordinária, de todos os dias. Foi uma transfiguração de todas as coisas simples e comuns, uma elevação dos atos mais corriqueiros e naturais ao nível do sublime. Mostrou-me que a caridade de Deus era suficiente para transformar a terra em céu. Pois Deus é Caridade e a Caridade é o Paraíso.

(...)

Os dois aspectos mais característicos da caridade divina no coração de um sacerdote são a gratidão e a misericórdia. Gratidão é a maneira como se exprime Sua caridade pelo Pai; misericórdia é a expressão da caridade de Deus, agindo n'Ele e atingindo por Seu intermédio os seus semelhantes. Gratidão e misericórdia encontram-se e fundem-se perfeitamente na Missa, que nada mais é senão caridade do Pai por nós, a caridade do Filho por nós e pelo Pai, a caridade do Espírito Santo, que é Caridade que nos une ao Pai e ao Filho.

Depois de rezar minha primeira Missa, compreendi perfeitamente e pela primeira vez em minha vida, que no mundo nada mais tem importância exceto amar a Deus e servi-Lo com simplicidade e alegria.

O Signo de Jonas, Thomas Merton (Editora Mérito, São Paulo - Rio de Janeiro), 1954. p. 209 e 210.