HOMILIA PARA A MISSA DE
CORPO PRESENTE DE PE. FELIX
17 de janeiro de 2016
Ontem, logo após a
morte de Padre Félix, liguei para o procurador geral de nossa Ordem,
Dom Timothy Kelly. Dom Timothy foi abade de Gethsemani durante 25
anos, e por muitos destes anos Padre Félix era seu Prior. Os dois
eram grandes amigos. Depois de receber a notícia, ele respondeu de
sua maneira lacônica característica: “Imagino que a morte dele
será uma grande perda para Novo Mundo.” Todos nós aqui podemos
responder de todo o coração: “Sim, e como!” E ainda, “E não
só para Novo Mundo.”
São Bernardo, que como
todos os demais Padres Cistercienses, gostava de brincar com palavras,
disse que a vida de um monge começa sendo gostosa mas sem muita
substância, passa a ser dura mas muito substanciosa e termina sendo
gostosa e substanciosa ao mesmo tempo. A esta síntese de doçura e
substância Bernardo dá o nome de sabedoria.
Não tive o privilégio
de conhecer pessoalmente o jovem Padre Félix, embora em nossas
conversas ele falasse bastante sobre sua juventude. Imagino que já
naquela época era quieto, irônico e fervoroso, porque continuou
sendo assim até os últimos dias de sua vida na terra. Sei que devia
ter sido um homem estudioso, porque na verdade padre Félix era o
grande teólogo de nossa comunidade. Sua leitura de diversão, sua
“leitura leve”, consistia de estudos exegéticos e obras de
teologia sistemática. Também é óbvio que durante toda a sua vida
tenha sido a de um homem honesto, reto e responsável. Uma iniciação
gostosa à vida monástica – certamente não desprovida de toda
substância.
Acho que, de alguma
maneira, os seus anos de superior em Novo Mundo constituíam a etapa
média: um tempo muito substancioso, mas também duro.
Em primeiro lugar, ele
veio já com quase 60 anos para uma cultura e uma comunidade
totalmente desconhecidas. Por causa da necessidade de tomar as rédeas
logo, fez apenas um curso básico de português e passou os primeiros
anos com grande dificuldade de comunicação. Ele dava a Novo Mundo
de mãos cheias tudo o que tinha para dar: tempo, energia, atenção,
capítulos cuidadosamente preparados, participação ativa no
trabalho manual, e uma vida profunda de oração. Ainda assim, havia
alguns relacionamentos difíceis entre ele e um ou outro dos monges
de mais idade. Esta foi uma fonte de verdadeiro sofrimento para Padre
Félix e o conduziu para as lutas mais clássicas e difíceis do
monge: o combate com a ira, a tristeza e a acédia. Por ser um homem
tão radicalmente bom no seu
cerne, acho que não era nada fácil para ele ver o reflexo destas
paixões no espelho do autoconhecimento, e enfrentar cada dia de novo
as circunstâncias que provocavam estas paixões. Mas ele não
desistia, por amor a Cristo.
Se eu partilho com
vocês, irmãos, irmãs e amigos de Padre Félix, um pouco das
primeiras duas etapas, é sobretudo, para fazer ressaltar a terceira.
Pois Padre Félix realizou em plenitude o esquema de São Bernardo
sobre as três etapas da vida monástica. Estes últimos vinte anos –
anos de nossa convivência – foram um milagre. Ou melhor, uma série
de milagres. Que privilégio ter testemunhado o nascimento e
amadurecimento do homem sábio, do monge no senso mais pleno da
palavra. Ano após ano, ele se tornava cada vez mais leve, mais
compreensivo, mais jovial, mais equilibrado, cumprindo o mistério de
seu nome, “felix” (que, como sabemos, é a forma latina para
“feliz”). Como foi que Irmão Mário o descreveu na missa desta
manhã? “Uma pessoa pacífica, tranquila e amorosa”.
Paradoxalmente, quanto mais encurvado ele ficava fisicamente, mais
elevado se tornava humanamente e espiritualmente, uma flecha
disparada para o céu. O homem exterior ia se desfazendo enquanto o
homem interior se renovava, humildemente e vitoriosamente. Cada um
aqui presente conservará em seu coração um momento inesquecível
desta glória do tempo da colheita de Padre Félix. Para mim,
pessoalmente, o terço que todos nós rezamos com ele dois dias
atrás, ao redor de seu leito na enfermaria, permanecerá para sempre
na minha memória – em especial no momento em que, ao fim da oração
"Salve, Regina", cada irmão dirigiu palavras breves e simples agradecidas a
Padre Félix, por sua vida e seu testemunho; e ele com voz clara
respondia, “Muito obrigado”.
Talvez haja um
liturgista escondido aqui nesta igreja esta tarde que dirá que as
normas litúrgicas determinam que a homilia na missa das exéquias
não seja um elogio do falecido mas sim uma pregação da
ressurreição. Mas é justamente isto o que quero dizer: Padre Félix
aqui, já nesta vida, nesta terra, neste mosteiro, viveu a morte e a
ressurreição de Cristo. Padre Félix, acamado na enfermaria, era
uma pregação viva da ressurreição de Jesus. “Quero conhecer a
Cristo, conhecer o poder de sua ressurreição e a participação nos
seus sofrimentos.” Na igreja antiga, um dos nomes mais comuns para
designar um monge era “um ressuscitado”. No fim de sua vida,
Padre Félix era este ressuscitado, cheio de sabor e substância,
encantador e profundo ao mesmo tempo. Agora ele aguarda o dia quando
Cristo levará esta identidade de monge-ressuscitado à sua
plenitude, numa glória que excede a nossa imaginação. Rezemos pela
vinda deste dia, assim como Padre Félix rezou por ela com tanta
intensidade. E vivamos com herdeiros agradecidos do seu legado
magnífico.
Dom Bernardo
Bonowitz, abade
Mosteiro Trapista Nossa
Senhora do Novo Mundo
5 comentários:
Que texto maravilhoso!
Por meio dele, puder conhecer com clareza, um monge, que nunca vi.
Obrigada!
Amém
Belo texto que me reportou para as vezes que observava Pe. Félix na loja do mosteiro rezando, caminhando, na Igreja...
Belo texto que me reportou para as vezes que observava Pe. Félix na loja do mosteiro rezando, caminhando, na Igreja...
Amém
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