18 março 2016

Epifânia de Merton

18 de março de 1958.
E


M LOUISVILLE, na esquina das ruas Fourth e Walnut, no centro da cidade, fi­quei de repente submerso pela compreensão de que eu amava toda aquela gente, que eles todos eram meus e eu deles, e que não podíamos estar alheios uns aos outros, embora fôssemos totais desconhecidos. Era como se tivesse acordado de um so­nho de separação, de espúrio auto-isolacionismo num mundo especial, um mundo de renúncia e de suposta santidade. A ilusão de uma vida santa separada dos outros é um sonho. Não que eu ponha em dúvida a reali­dade da minha vocação ou da minha vida monástica: mas a concepção de “separação do mundo” que temos no mosteiro se apresenta, com demasiada facilidade, como uma completa ilusão. A ilusão de que, por termos feito votos, nos tornamos seres de uma espécie diferente, pseudo-anjos, “homens espirituais”, homens de vida interior, ou coisa parecida.


Certamente esses valores tradicionais são muito reais, porém sua realidade não é de forma tal que se coloque fora da existência cotidiana num mundo cheio de incertezas. Nem nos dá o direito de desprezar o que é secular. Embora “fora do mundo”, pertencemos ao mesmo mundo que toda gente. O mundo da bomba nuclear, o mundo do ódio racial, o mundo da tecnologia, dos meios de comunicação de massa, das grandes empresas, da revolução e de tudo mais. Temos para com todas essas coisas uma atitude diferente, porque pertencemos a Deus. No entanto, todos os outros também pertencem a Deus. Talvez apenas nós temos consciência disso e fazemos uma profissão dessa tomada de consciência. Entretanto, será que isso nos autoriza a nos considerarmos diferentes, ou mesmo melhores do que os outros? Tudo isso é um absurdo.

A sensação de libertação dessa diferença ilusória proporcionou-me tal alívio e tanta alegria que quase comecei a rir abertamente. E imagino que minha felicidade poderia ser expressa pelas palavras: “Graças a Deus, graças a Deus que sou como os outros homens, que sou apenas um homem entre outros”. Pensar que, por dezesseis ou dezessete anos, levei a sério tamanha ilusão, tão solidamente implícita em nosso pensamento monástico!


É um destino glorioso ser membro da raça humana, embora seja uma raça entregue a muitos absurdos e que comete muitos e terríveis erros. E, com tudo isso, o próprio Deus exultou ao tornar-se membro da raça humana. Um membro da raça humana! Ter consciência de tão corriqueira descoberta é como receber a notícia de que nosso bilhete foi premiado numa loteria cósmica.

Sinto uma imensa alegria de ser homem, membro de uma raça na qual o próprio Deus se encarnou. Como se as dores e a estupidez da condição humana pudessem me esmagar, agora que tenho consciência daquilo que nós todos somos. Que bom seria se todos pudessem ter consciência disso! Isto porém não pode ser explicado. Não há meio de dizer às pessoas que estão todas elas por aí brilhando como sóis.


Isso em nada modifica o sentido e o valor da minha solidão, pois de fato é função da solitude tornar-nos conscientes de tais coisas, com uma clareza que seria impossível a alguém que se achasse totalmente imerso em outras preocupações, em outras ilusões e em todos os automatismos de uma existência rigidamente coletiva. Entretanto, minha solidão não é minha, pois vejo agora o quanto ela lhes pertence — e que tenho uma responsabilidade em relação a eles, e não apenas a mim. É porque sou um com eles que lhes devo isso de ser só, e, quando estou só, eles não são “eles”, mas eu próprio. Não são estranhos!


Aconteceu, então, subitamente, como se eu visse a beleza secreta de seus corações, a profundeza de seus corações onde nem o pecado, nem o desejo, nem o autoconhecimento podem penetrar. Isto é, o cerne da realidade de cada um, da pessoa de cada um aos olhos de Deus. Se ao menos todos eles pudessem ver-se como realmente são. Se ao menos pudéssemos ver-nos uns aos outros deste modo, sempre. Não haveria mais guerra, nem ódio, nem crueldade, nem ganância… Suponho que o grande problema seria que cairíamos todos de joelhos, adorando-nos uns aos outros, Isto, porém, não pode ser visto, só pode ser acreditado e “compreendido” por um dom peculiar.


Uma vez mais, aquela expressão “le point-vierge” (não sei traduzi-la) cabe aqui. No centro de nosso ser, existe um ponto como que vazio, intocado pelo pecado e pela ilusão, um ponto de pura verdade, um ponto, uma centelha, que pertence inteiramente a Deus, que nunca está à nossa disposição, a partir do qual Deus dispõe de nossas vidas. Que é inacessível às fantasias da nossa própria mente ou às brutalidades de nossa vontade. Esse pontinho “de nada” e de absoluta pobreza é a pura glória de Deus em nós. É como ter seu nome inscrito em nós, como sendo nossa pobreza, nossa indigência, nossa dependência, nossa filiação divina. 
É como um diamante puríssimo, a brilhar na luz invisível do céu. Isso existe em todos os homens, e se pudéssemos vê-lo, veríamos esses bilhões de pontos de luz na face e no ardor de um sol que fariam desaparecer inteiramente toda a escuridão e toda a crueldade… Não tenho nenhum programa para essa visão. É algo dado de graça. Mas a porta do céu está em toda a parte.
Traduzido do livro de Thomas Merton, Conjectures of a Guilty Bystander, publi­cado no Brasil em 1970 com o título de Reflexões de um espectador culpado pela Editora Vozes.


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