29 dezembro 2014

Não aprisione o espírito


"Quanto mais intenso, forte e prolongado o nosso recolhimento, tanto maior o perigo de cair nessa ilusão. (veja o artigo anterior). Com o tempo vai-se tornando fácil recolher-nos sem, de fato, entrarmos em contato com Deus. Esse recolhimento não passa de um artifício psicológico. É um ato de introspecção, que se aprende sem esforço. Ele abre para um sombrio, confortável e silencioso quarto interior, onde nada acontece, nada perturba, porque se conseguiu achar a chave que desliga, em sua origem, toda a atividade intelectual. Isso não é oração, e embora possa ser coisa tranquila e benéfica por um pouco de tempo, causará o maior dano, se nos apegamos e o levamos longe demais.

Recolhimento sem fé confina o espírito numa prisão privada de luz e de ar. Um ascetismo interior não deve terminar por fechar-nos em tal cárcere. Só faria, com isto, anular os fins da graça divina. Não é pondo limites à atividade da alma que a fé nos estabelece em recolhimento, mas na remoção de todas as limitações da nossa inteligência e vontade, livrando a mente da dúvida e a vontade da hesitação, de modo que o espírito, livrado por Deus, mergulha nas profundezas da sua invisível liberdade."

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág.186-187

23 dezembro 2014

Natal: alegria infinita


Sieger Köder, São Francisco celebra o Natal no povoado de Greccio
"Estou certo de que, onde o Senhor vê o pontinho de pobreza e extenuação e desamparo a que o monge é reduzido, o solitário e o homem de lágrimas, Ele então deve descer e vir e nascer, lá nessa angústia, e torná-la um ponto constante de alegria infinita, uma semente de paz no mundo."

Merton na Intimidade (Editora Fissus, Rio de Janeiro), 2001, pág. 228

15 dezembro 2014

Temor

"É só na presença de Deus que nos revelamos em toda a verdade. Porque é então que, vendo a Deus em sua própria luz, vinda da obscuridade da fé, também vemos, à mesma claridade, como somos diferentes do que pensamos ser em nossa ambição e vaidade.

Aqui o recolhimento colore-se de compunção e daquilo que os Padres chamam de “santo temor”. Temor é o conhecimento de nós mesmos em presença da santidade de Deus. É o conhecimento que temos de nós diante do seu amor, ao ver como estamos longe do que esse amor queria. Ele sabe quem é Deus e quem somos nós!

Mas um  temor “santo” não pode temer o amor. O que ele teme é a discrepância entre si e o amor, e corre a esconder-se no abismo de luz, que é o amor de Deus e a sua perfeição.

Esse temor é absolutamente necessário para que se preserve o nosso recolhimento  de degradar-se numa falsa doçura e presunção, que se supõe segura da graça, e cessa de temer a ilusão, comprazendo-se com o pensamento da sua virtude e alto grau de oração. Tal complacência cai imperceptivelmente, como uma cortina impenetrável, entre nós e Deus, que se vai, deixando conosco uma terrível ilusão."

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág.186

10 dezembro 2014

Eu já vivi

“31 de janeiro de 1960. Nunca pensei que uma coisa dessas, o aniversário dos meus 45 anos, fosse acontecer. No entanto, aqui está ele. Por que será que eu sempre andei meio convencido de que iria morrer jovem? Talvez por uma espécie de superstição — o medo de admitir uma esperança de vida que, se admitida, poderia ter de ser desfeita. Mas agora 'eu já vivi' uma boa parte da vida, e, quer o fato seja importante quer não, nada pode alterá-lo. É certo, infalível — embora isso também seja apenas uma espécie de sonho. Se eu não chegar aos 65, importa menos. Posso relaxar. A vida é uma dádiva com a qual estou satisfeito: não maldigo o dia em que nasci. Pelo contrário, se eu não tivesse nascido, nunca teria tido amigos para eu gostar deles e eles gostarem de mim, nunca cometeria os erros com os quais se aprende, nunca veria novos países. Já o que eu possa ter sofrido é de somenos importância e, com efeito, parte do grande bem que a vida tem sido e, espero, há de continuar a ser. Afinal, subitamente me dou conta de que uma pessoa de 45 anos ainda é jovem”.

Merton na Intimidade (Editora Fissus, Rio de Janeiro), 2001

01 dezembro 2014

Nossas livres escolhas


Enquanto vivemos esta vida, ao mesmo tempo somos e não somos. Vivemos em transformação contínua, e todavia é sempre a mesma pessoa que muda. Até as mudanças lhe exprimem a personalidade, a desenvolvem e confirmam no que ela é.

Um homem é um ser livre que vive sempre a transformar-se. Essa mudança não é jamais indiferente. Mudamos sempre para melhor ou para pior. O nosso desenvolvimento é medido por nossas livres escolhas, e acabamos à imagem dos desejos que temos.

Se eles tendem àquilo que somos destinados a possuir, a realizar e a vir a ser, então nós nos tornaremos aquilo que devemos ser.

Mas, se eles tendem para coisas que não têm sentido para o nosso crescimento espiritual, perdendo-se em sonhos, em paixões ou em mentiras, seremos falsos a nos mesmos e, no fim, a nossa vida proclamará que mentimos a Deus, aos outros e a nós mesmos. Seremos estranhos tanto a nós próprios como a Deus.

No inferno não há recolhimento. Os réprobos são exilados não só de Deus e dos outros, mas de si mesmos.

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág.181-182