31 janeiro 2015

Uma carta para Thomas Merton

tradução: Sieni Maria Campos

Caro Padre Louis,


O sol passou por Aquário cem vezes desde o seu nascimento no “último dia de janeiro de 1915, sob o signo do Portador de Água, em um ano de uma grande guerra”. Faz quase três quartos de século que você entrou para a Abadia de Nossa Senhora de Getsêmani como postulante, penitente e convertido; encerrou-se nas “quatro paredes de liberdade” em 10 de dezembro de 1941, quando os Estados Unidos entravam na Segunda Guerra Mundial, um mês e meio antes do seu 27º aniversário. Você morreu em 10 de dezembro de 1968, exatamente 27 anos depois, após fazer uma palestra sobre “Marxismo e Perspectivas Monásticas” em uma reunião em Bancoc. Sua vida se divide em uma metade secular e outra religiosa; e esta é quase a única coisa a seu respeito que podemos equacionar nitidamente.

Ouvi falar de você pela primeira vez na infância, na periferia do movimento pacifista em Nova York; lembro-me de ouvir as queixas de alguns ativistas do Catholic Worker quando você se recusou a apoiar a queima das cartas de convocação para o serviço militar durante a guerra do Vietnã; você conseguia desconcertar até quem o considerava um profeta. Na época da faculdade, descobri os seus livros, das clássicas memórias, A Montanha dos Sete Patamares, às suas reflexões sobre Zen, Taoísmo e Sufismo. Você me convenceu de que a vida contemplativa continua sendo não só viável como essencial. Meu futuro marido imaginou que poderia me conquistar carregando no bolso um exemplar de
Contemplative Prayer; conseguiu. Nessa época você tinha se tornado o que o seu nome sugere em anagrama: mentor de milhões de pessoas que nunca tiveram a oportunidade de conhecê-lo face a face.

Mas desejamos conhecê-lo face a face; daí a profusão de biografias notáveis – entre as quais a investigação levemente psicanalítica de Monica Furlong, a escrita por Michael Mott cheia de fatos da vida cotidiana, os estudos empáticos de Lawrence Cunningham e William Shannon, o retrato de grupo traçado por Paul Elie que o relacionava com seus companheiros americanos de peregrinação Dorothy Day, Walker Percy e Flannery O’Connor, o filme biográfico de Paul Wilkes e Audrey Glynn – e os numerosos livros de fotos de Ed Rice, John Howard Griffin, Jim Forest e outros. Como você era fotogênico de hábito branco e escapulário preto contra o fundo dos campos de pasto e alfafa, ou de roupas de trabalho de jeans e chapéu de palha na varanda do seu eremitério, ou, livre das suas quatro paredes de liberdade, desfrutando da companhia dos novos irmãos Thich Nhat Hanh e Dalai Lama!

E, apesar de todos os seus escritos que o revelavam, como você era inescrutável! Você escreveu memórias dignas de serem comparadas com as Confissões de Agostinho – não fossem elas arranhadas por uma rebeldia metafísica - contemptus mundi – parecida com a do personagem Holden Caulfield de o Apanhador no Campo de Centeio. Você bebeu nas fontes da espiritualidade monástica por meio de erudição e reflexão sobre a Regra de São Bento, os Padres do Deserto, João Cassiano, Bernardo de Claraval, e depois traduziu essa espiritualidade em um idioma de autenticidade e distanciamento que agora parece antiquado. Você devolveu à contemplação o lugar central que lhe pertence de direito na vida cristã e fez muito “para assegurar ao mundo moderno que, na luta entre pensamento e existência, nós [monges] estamos do lado da existência, não da abstração”, e depois retratou a contemplação como um esvaziamento de si tão radical que esta perde muito de seu conteúdo especificamente religioso. Você lutou pelo privilégio de viver como eremita no terreno da abadia, mas permitiu que o eremitério se tornasse lugar de reunião para seus amigos não monásticos durante um período em que você estava (como disse a Rosemary Radford Ruether) “contrariado com os católicos e com medo deles”.

Em uma leitura psicanalítica reducionista, você era um órfão à procura dos pais perdidos, um amante reprimido, um narcisista se afogando em sua própria reflexão. Em uma leitura agostiniana com mais discernimento, contudo, você era um Homem Comum cujo coração está inquieto enquanto não repousa em Deus; em uma leitura monástica sensata, você era um dos milhares de monges essencialmente bons que se extraviaram mas mantiveram o rumo. Acredito que você de fato manteve o rumo. Se não tivesse sido pela falha do ventilador elétrico, ou pela falha no seu próprio coração, acredito que, depois de passadas as tempestades da juventude, você teria retornado a Getsêmani e seria um modelo de sabedoria monástica.

Você disse que o propósito do monaquismo não é sobrevivência, e sim profecia. O que você talvez não tenha percebido – pois sua entrada na vida monástica foi o ponto alto do renascimento desta durante a guerra e o pós-guerra – é que a sobrevivência do monaquismo é profecia, um tipo especial de profecia que serena as paixões políticas e sobrevive a elas.
 

O Diário da Ásia de Thomas Merton diz que as palavras com que você terminou sua intervenção na reunião de Bancoc foram “Então irei desaparecer”. No entanto, a citação completa de suas palavras lhes tira o sentido de despedida: “Então irei desaparecer de vista e todos poderemos tomar uma Coca-Cola ou algo parecido.” Então você morreu, com sua história inacabada. Mas, a partir de suas cartas, poemas, diários, romances, homilias e gravações de suas palestras aos seminaristas de Getsêmani, podemos montar a imagem de um escritor brilhante, monge comprometido e homem frágil que buscou a Deus com todo o seu coração e nos convida a fazer o mesmo.

Pax.



26 janeiro 2015

O Espírito sopra onde quer


"Deus está em toda parte e nunca nos deixa. No entanto, Ele parece, umas vezes, presente; outras, ausente. Se não O conhecemos bem, não percebemos que Ele nos pode ser mais presente, em sua ausência, do que em sua presença.

Deus tem duas espécies de ausência. Uma é a que nos condena; a outra a que nos santifica.

Na ausência que condena, Deus não nos conhece, visto que pusemos um outro deus em seu lugar e recusamos ser conhecidos por Ele.

Na ausência que santifica, Ele está presente, e essa presença é afirmada e adorada pela ausência do resto. Ele está mais perto de nós do que nós mesmos, embora não o vejamos. Quem quer que O tente agarrar e reter, prende-Lo-á. Ele é como o vento que sopra onde lhe apraz. Quem O ama, deve amá-Lo assim vindo não se sabe donde, e indo não se sabe para onde."

Homem algum é uma ilha, Thomas Merton (Editora Agir), 1968, pág.194