São Bernardo de Clairvaux, Abade e Doutor da Igreja |
Por Thomas Merton
Os santos são sempre um mistério. Não se
pode acabar de compreender completamente o que faz sua personalidade
única e, ao mesmo tempo, universal.
O
enigma da santidade é a tentação e muitas vezes a ruína dos
historiadores. Isso ainda é mais verdadeiro para um santo como Bernardo
de Claraval, que dominou toda a história do seu tempo. A santidade nasce
da luta – de contradições que se resolvem na união. O historiador é
tentado a ver em Bernardo apenas a luta entre as forças sociais e
culturais encarnadas nele: pois Bernardo continha todo o século XII em
si. Isso quer dizer que incorporou e uniu em si duas outras grandes
épocas, vivendo na transição entre ambas. A sua vida e a sua carreira,
religiosa e política, representavam a tentativa de resolver, tanto para
os seus contemporâneos como para ele, os problemas daquele tempo. Não
digo que Bernardo atingiu a solução: nenhuma época, nenhuma geração,
nenhum homem, vê a solução para todos os seus problemas. São Bernardo
fracassou muitas vezes. Os seus fracassos foram tão grandes,
significativos e, em última análise, construtivos como os seus êxitos.
Quase tudo que fez moldou tremendamente o curso da história.
Não
basta ver em Bernardo a união entre o romanesco e o gótico, a transição
entre São Gregório VII e São Francisco de Assis, entre o século X e o
século XIII. Uma explicação brilhante, mas insuficiente, do grandioso
trabalho levado a cabo por São Bernardo atribui o seu gênio, a sua
energia e a sua santidade a uma tensão dialética entre essas duas
grandes forças espirituais que se enfrentavam na sua alma. Sim, a teoria
é insuficiente. Ainda assim, as forcas estavam lá, e devemos levá-las
em consideração.
Por
um lado, Bernardo era um nobre da Burgúndia, um guerreiro nascido para
ser cavaleiro ou prelado. Nasceu em 1090, num castelo pouco distante de
Dijon. Então, os muros e torres da basílica monástica de Cluny apontavam
imponentemente para o céu. Cluny era a expressão viva da grandiosa
estrutura eclesiástica legada pelo Papa Gregório VII, falecido cinco
anos antes; uma estrutura unificada e reformada. Cluny era sinônimo de
poder, autoridade, centralização e lei. A sua grandeza, o luxo da sua
liturgia, a vastidão do seu império monástico constituíam a imagem
externa do reinado de Cristo sobre a sua Igreja, da penetração do seu
domínio em cada área da vida e da cultura humanas. A Cluny de São Hugo e
a Roma de São Gregório VII faziam parte de um mundo que acreditava que
São Pedro tinha duas espadas: o seu poder espiritual e o seu poder
temporal. Ninguém ficava surpreso ao vê-lo manejar ambas.
Ao
mesmo tempo, estava nascendo uma nova geração. O feudalismo estava
prestes a despedaçar-se; aproximava-se o tempo das comunas, guildas,
catedrais e universidades. O jovem Bernardo de Fontaines, que poderia
ter arranjado para si um cargo alto na Igreja ou ganhado fama nas suas
escolas, renunciou à fama e à grandeza, à sua herança e às suas
oportunidades e buscou uma solidão que as torres de Cluny desdenhavam. O
jovem temia servir na corte do grande Rei por sentir-se chamado a algo
muito maior que o poder. Acreditava no Cristo Pantocrator, mas
intuía que esse grande Senhor revelar-se-ia de uma maneira bastante
diferente da floresta de Cister. Aquele que Bernardo buscava na pobreza,
no silêncio e na solidão era o Verbum Sponsus, o Deus que se
manifesta ao mundo inteiro não apenas como Rei e Juiz, mas como o Noivo
que visita a alma humilde e solitária, no segredo da oração.
Havia,
pois, em Bernardo uma atração mais forte, uma corrente mais poderosa
que o afastou dos esplendores litúrgicos de Cluny e das sutilezas das
escolas. Tratava-se da corrente da mística, da ascética, da liberdade,
da espiritualidade e do personalismo. Uma corrente que começava a fluir
em muitas direções: uma delas conduzia a um Francisco de Assis; a outra,
à heresia dos albingenses.
São
Bernardo parece ter pensado ser possível renunciar completamente ao
primeiro elemento da sua alma e viver apenas pelo segundo. As coisas não
seriam assim tão simples. A sua própria reputação de místico, asceta,
taumaturgo e, numa palavra, santo fez com que lhe fosse impossível
evitar que se tornasse um sacerdote notável, um defensor da autoridade,
da lei, do papado, um homem de Deus na política, um pregador das
Cruzadas. Mais que isso: o seu espírito não estava feito para a piedade
individualista. Por ser muito humano e muito místico, Bernardo era
também, essencialmente, um homem da Igreja – Vir Ecclesiae.
Repassaremos
muito brevemente alguns detalhes da sua vida extremamente ativa. Apesar
de a tensão entre essas duas potências aparentemente contraditórias não
explicar a vida, as realizações ou a santidade de São Bernardo, é quase
certo que tenha sido um fator na sua santificação. Como dissemos: toda a
santidade nasce da luta.
Explicar
a santidade de Bernardo enumerando as suas obras, conflitos e problemas
seria como tentar explicar a santidade de Teresa de Lisieux dizendo que
uma das suas irmãs espirrou água suja nas suas roupas na lavanderia do
convento e que outra a distraia rezando o rosário em voz alta durante a
sua oração mental. São outros os dois elementos a serem conciliados e
unidos nos santos: o humano e o divino. Neste conflito, o humano é
tomado de assalto pelo divino, atravessado por ele e mesmo elevado
corporalmente a uma nova dimensão. Mas sempre no mistério. Não podemos
ver o que acontece. Nenhum homem pode ver dentro da alma alheia. Mal
pode ver dentro da própria alma!
Quando
falamos de São Bernardo, temos necessariamente de ater-nos mais ao que
sabemos do que ao que não podemos saber. Mas ao apontarmos os acidentes e
efeitos visíveis à superfície de uma vida de santidade profunda e
invisível, tenhamos em mente que o essencial é aquilo que não vemos.
Qualquer coisa fora da periferia do mistério central, que possamos ver
claramente na vida do santo, na verdade, pouco importa se não for um
tipo de sinal da sua santidade interior. Mais precisamente, os
pensamentos, atos e virtudes do santo não são maravilhosos em si mesmos;
a sua finalidade é serem lampejos saídos do cerne do mistério de Deus.
Pois o santo não representa a si próprio, ou o seu tempo, ou a sua
nação: é um sinal de Deus para a sua geração e para todas as gerações
por vir.
Além
do mais, santidade é vida sobrenatural. Os santos não apenas têm vida,
mas também dão vida. Aqueles que receberem vida deles conhecem melhor a
sua santidade. Os contemporâneos de Bernardo não tinham dúvidas sobre o
que recebiam dele. Ateava fogo onde estivesse. O poder de Bernardo era
mais que a influência de um gênio ou a eficácia persuasiva de uma
virtude heroica: era carisma. Deus agia nele, fazia coisas tão
maravilhosas que os homens sabiam ser Ele quem trabalhava, não Bernardo.
A graça do Deus que tomou posse desse homem frágil incendiava os
corações de todos aqueles que o ouviam falar.
Cabe
a nós tentar entender a santidade de São Bernardo não apenas estudando
da sua biografia, mas captando algo do seu efeito vivificador. O papa
Pio XII publicou uma encíclica exatamente com o objetivo de ajudar-nos
nessa tarefa: Doctor Mellifluus (1953). Nela, São Bernardo é
tratado, sobretudo, como um Doutor e como um “Padre” da Igreja, e não
como apenas uma grande figura do seu tempo.
A
liturgia da festa de São Bernardo no missal e no breviário dos
cistercienses mostra a enorme fé da Igreja no poder vivificador
exercido, pela Comunhão dos Santos, por aqueles que ela venera como
Padres e Doutores. Ensina que Cristo comunica-se aos homens por meio da
ação ministerial dos seus santos, não apenas quando estão vivos, mas
também depois da morte (1). Assim cantam os monges num dos seus
responsórios dirigidos a São Bernardo: “Entraste nas potências do Senhor
e agora, tornado um intercessor mais poderoso, obtém-nos uma parcela na
luz e na doçura de que agora gozas!” (Introisti in potentias Domini, et jam potentior ad impetrandum, fix nos ejus qua frueris lucis suavitatisque participes)(2).
(1) Cf. o artigo sobre São Bernardo no Dictionnaire de Spiritualité (vol. I, col. 1491) de Anselme le Bail, OCSO.
(2) Breviário Cisterciense, Matinas da Festa de São Bernardo, nono responsório.
Seria
inútil tentar, em tão curto espaço, listar mesmo alguns dos grandes
feitos de São Bernardo, esboçar em traços largos as suas viagens a
serviço de Deus, descrever as suas reformas monásticas, as suas
fundações, as suas intervenções nos assuntos dos reis, bispos e papas.
Mas é preciso que tenhamos alguma ideia da sua vida e do seu caráter. A
maneira mais fácil de fazê-lo é observá-lo em três pontos decisivos da
sua trajetória. Abriremos o livro da sua vida somente em três pontos:
primeiro, em 1115, quando Bernardo é um jovem abade de 25 anos; depois,
em 1124, um pouco além da metade da sua vida, no divisor de águas da sua
trajetória; por fim, em 1145, quando Bernardo é, na prática, o papa.
São Bernardo salva a vida de um mosteiro recém-fundado, Cister (Citeaux,
em francês), ao nele ingressar com mais trinta companheiros em 1112. A
casa, que parecia prestes a desaparecer em 1111, torna-se forte o
bastante para fundar outros três mosteiros em 1114 e 1115. Em junho de
1115, logo depois da fundação de Morimod, Bernardo é enviado por Estevão
Harding para começar um mosteiro num ensolarado vale no platô de
Langres, entre as fronteiras da Burgúndia e da Champanha. O local viria a
tornar-se famoso sob o nome de Claraval, o “Vale Claro”; famoso por
causa do seu abade Bernardo, por causa dos santos que lá viverem, da
vida que levavam e por causa do Deus que encontraram. Tanto Claraval
como Bernardo significavam sobretudo uma coisa: a grande renovação da
mística no século XII, uma renascença espiritual cujos efeitos atingiram
todas as outras renascenças da época. Pois Bernardo viria a influenciar
tudo, desde a política ao roman courtois e toda a tendência
humanística ao “amor cortês”. Deixou suas marcas no canto gregoriano, na
vida clerical, e em todo o desenvolvimento da arquitetura e da arte
góticas. Um dos sinais de uma renovação espiritual realmente espiritual é
que ela afeta todos os tipos de vida e atividade ao seu redor, inspira
novas maneiras de arte, desperta uma nova poesia e uma nova música,
chega mesmo a fazer os apaixonados falarem um ao outro numa nova
linguagem e a pensar um no outro com um novo tipo de respeito.
Mas
em 1115, Claraval ainda não é famosa. Bernardo vive ali com mais doze
companheiros, em pequenas cabanas de madeira sob as árvores da floresta.
Tinha acabado de ser ordenado sacerdote e sagrado abade pelo bispo de
Châlons-sur-Marne: o filósofo Guilherme de Champeaux. E Guilherme
conseguirá que o Capítulo Geral da ordem colocasse sobre os seus
cuidados a saúde de São Bernardo. O jovem abade já começava a
desfazer-se sob o peso de uma vida em que a austeridade cisterciense era
multiplicada por vinte pela indigência, a falta de comida e pelo seu
próprio ascetismo implacável. Bernardo é forçado a viver separado do
resto da comunidade durante os primeiros anos da nova fundação, num
casebre que serve também de enfermaria. Quase morre ao cair nas mãos de
um médico charlatão que morava nas proximidades. Ao mesmo tempo, é
procurado por postulantes e amigos que chegavam a Claraval para ouvir as
suas meditações sobre os profundos mistérios do Cântico dos cânticos,
livro que um dia comentaria na sala capitular de uma grande abadia de
pedra que os seus monges logo edificariam. Não tem qualquer motivo para
pensar que a sua vida não seria senão uma vida contemplativa, perturbada
apenas pelos cuidados inevitáveis do seu encargo de abade e dedicada a
produzir frutos silenciosos por meio da formação e direção dos seus
monges.
Em
1124, nove anos mais tarde, Claraval ainda não é o mosteiro grande e
bem estabelecido que naturalmente associamos ao nome de Bernardo. Ainda
anseia por segurança, e as sólidas bases do seu desenvolvimento futuro
são lançadas por dois irmãos de Bernardo, os despenseiros Gerardo e Guy.
Ambos transformaram os pastos e as terras florestais doadas ao mosteiro
num sistema de granjas, ou fazendas monásticas mantidas pelos irmãos
leigos. Claraval podia, ao menos, sustentar-se a si própria, e com o
apoio do grande príncipe da região, Thibaud da Champanha, o mosteiro
logo passaria a ser mais próspero.
Claraval
não faz imediatamente muitas fundações. Dos setenta novos mosteiros que
seriam fundados diretamente por São Bernardo, apenas três já tinham
sido estabelecidos durante a primeira década de Claraval. Trois
Fontaines surgiu em outubro de 1118. Um ano mais tarde, no outono de
1119, fundou-se Fontenay. Foigny, onde São Bernardo “excomungou” as
moscas, apareceu dois anos mais tarde, em 1121. Parece que naquele tempo
São Bernardo hesitava em fazer muitas fundações. É certo que, nessa
época, resiste à propagação da ordem na Espanha, recusa-se a fundar uma
casa na Terra Santa e evita fazer mais na França até 1128, quando veria
que era inútil remar contra a corrente. Neste ano, funda Igny em março e
Reigny em setembro. Nos começos da década de 1130, estende as fundações
à Alemanha e à Inglaterra (Rievaulx, 1132) e é o primeiro a enviar uma
colônia cisterciense à Espanha (Moruela, 1132) apesar da sua oposição
inicial.
Tudo
isso ainda não tinha acontecido em 1124. Mas Bernardo estava próximo do
final da sua “formação” providencial que o preparara para o seu grande
trabalho na Igreja de Deus. Dizer que dez anos de saúde precária,
insegurança, sofrimento e oração estavam chegando ao fim não implica que
a sua saúde melhoraria, que o seu sofrimento não aumentaria ou que a
sua vida de oração não viria a aprofundar-se. Bernardo, porém, teria
mais força para viajar e entrar na vida pública.
Parte
da sua “formação” foi o seu aprendizado sobre a natureza humana. Em
primeiro lugar, teve de aprender que o homem não é um anjo, que os
monges ainda têm corpos e que, apesar de ele ter tentado não apenas
mortificar os seus desejos, mas matar os próprios sentidos, é melhor
recordar que o homem é humano e que a sua natureza humana deve ser
divinizada pela graça, não destruída por ela. Assim, o santo que sempre
fora espiritual e puro demais para sentir qualquer tentação da carne
aprendeu a não se deixar surpreender pelo fato de todos os homens não
serem exatamente como ele. Nas suas próprias palavras, aprendeu o valor
daquilo que chamou de “a fuga da justiça para a misericórdia”. Descobriu
que a abnegação é incompleta se não conduz à compreensão simpática do
próximo, à misericórdia, à caridade; aprendeu, enfim, que o “unguento”
da compaixão fraterna é necessário para mostrar aos seus monges quão bom
e agradável é para os irmãos viver juntos em unidade [Cf. Sal 132, 1].
Por
fim, suporta grandes provações ao ver pessoas em quem confiava
abandonar a Ordem que encarnava todos os seus ideais monásticos. O seu
jovem sobrinho Roberto, que o acompanhou a Cister e fizera parte da
pequena colônia que iniciou Claraval, “apostata” em 1119, fugindo para a
vida opulenta e relativamente fácil de Cluny. A primeira, e uma das
mais longas, carta de São Bernardo presente nas suas obras completas é
endereçada a Roberto, pedindo-lhe que volte à austeridade de Cister:
Se as peliças finas e de qualidade, os tecidos sutis e preciosos, as luvas grandes e os capuzes largos, as capas de pele e as estamenhas suaves, fazem um santo, o que faço eu que não te sigo? Mas tudo isso serve de alívio para os fracos e não são armas de combatentes. Os que vestem trajes delicados estão nas cortes dos reis. O vinho e os seus semelhantes, o mosto e a banha servem ao corpo, não ao espírito. Não é aquilo que sai das panelas que engorda a alma. Pois muitos irmãos nossos serviram muito tempo a Deus no Egito sem comer peixe. A pimenta, o gengibre, o cominho, a sálvia e muitas outras especiarias para molhos agradam ao paladar, mas inflamam a luxúria. Acaso farias a minha segurança depender de tais coisas? Podes passar com tranquilidade a juventude entre elas? O sal e a fome são condimentos suficientes para um homem que vive sóbria e sabiamente.
O estilo da carta é próprio de Bernardo, especialmente durante os primeiros anos de Claraval (3).
(3) Carta I (PL 182).
O
ano de 1125, porém, traz consigo um abandono muito mais perigoso para
os cistercienses do que o caso de um monge que foge para Cluny. Um dos
companheiros de Bernardo quando da sua chegada a Cister foi Arnoldo, o
primeiro abade de Morimond. Os dois jovens cistercienses começaram a
carreira abacial no mesmo ano, 1115, e enfrentaram as mesmas provas,
dificuldades e decepções. E de repente vem a notícia de que o Abade de
Morimond desapareceu do seu mosteiro, levando alguns monges consigo, e
foi para a Terra Santa, onde queria fundar uma casa sem pedir nenhuma
permissão. Na verdade, os fugitivos nunca chegaram à Palestina. Arnoldo
morreu na Bélgica depois de ignorar uma carta que Bernardo lhe
endereçou. Ao abade de Claraval coube a missão de reunir os outros
monges e trazê-los de volta. Foi um acontecimento importante na vida de
São Bernardo e da Ordem. Morimond era um dos pilares da nova estrutura, e
havia razão para temer que toda a Ordem viesse a ruir com a queda de
Arnoldo.
Durante
as suas andanças para acertar as coisas após a apostasia de Arnoldo,
Bernardo perde o seu prior, Gaucher, que havia sido enviado à Claraval
para substituí-lo. Mas pouco tempo depois, essa perda é reparada e
Claraval ganha um dos seus maiores priores: Godofredo de la Roche
retorna de Fontenay, onde era abade, e assume o cargo. Ele seria um dos
mais valiosos cooperadores e ajudantes de São Bernardo ao longo dos anos
de atividade que estavam por vir.
Nessa
mesma época, São Bernardo também se ocupa de outras ordens religiosas.
Tinha muitos amigos beneditinos. O mais próximo deles era Guilherme,
abade de Saint Thierry, nas fronteiras de Rheims. Por muitos anos
Guilherme foi um visitante frequente de Claraval, a ponto de insistir em
querer tornar-se um cisterciense. Mas não podemos pensar que Bernardo
queria que todos os beneditinos se fizessem cistercienses. Neste caso,
não era nem um pouco favorável à mudança. E disse a Guilherme numa
carta:
Para
dizer-te o que penso (sobre o teu plano), digo-te, a não ser que esteja
enganado, tratar-se de algo que não te aconselho a tentar e que não
conseguirias levar a cabo. De fato, desejo para ti aquilo que há muito
já não é segredo para mim e aquilo que tu mesmo desejas para ti.
Todavia, pondo de lado o que ambos desejamos, como convém que façamos, é
mas seguro para mim e mais vantajoso para ti que eu te aconselhe
naquilo que penso ser o desejo de Deus. Portanto, digo que te deves ater
àquilo que tens, permanecer onde estás, e tentar ajudar aos que estão
sob o teu governo. Não tentes escapar da responsabilidade do teu encargo
enquanto ainda o puderes exercer para o benefício dos teus governados.
Ai de ti se os governa e não os ajuda; pior ainda se não os ajuda por
esquivar-se do fardo de governá-los (4).
(4) Carta LXXXVIII (PL 182).
Outro
amigo próximo de São Bernardo era o fundador da Ordem Premostratense,
São Norberto, futuro bispo de Magdeburgo. Desde a sua ordenação
sacerdotal, no mesmo ano que a de Bernardo, Norberto conquistou um
grande fama como pregador e asceta. Em 1120, iniciou uma comunidade
religiosa na diocese de Laon, não muito distante de Claraval. O bispo de
Laon, que presenteou Norberto com a propriedade de Premontré, também
deu a Bernardo o terreno onde foi fundado o mosteiro de Foigny. Em 1124,
São Bernardo presenciou a instalação dos premostratenses no mosteiro de
São Martim de Laon, e neste mesmo ano Norberto disse a Bernardo que
haveria em breve uma grande crise na Igreja. Profetizou o cisma de
Anacleto II em 1130, fato que tiraria Bernardo do seu claustro para
metê-lo na barafunda do mundo.
O
ano de 124 provavelmente também é a data da viagem de São Bernardo a
Grenoble e à Grande Cartuxa. A sua amizade com Guigo, ou Guy, o
legislador e organizador da Ordem Cartuxa, produziria frutos
extraordinários para ambos. Duas obras literárias permanecem até hoje
como testemunhos dessa abundância: as austeras e profundas Meditações, de Guigo, e Sobre o amor de Deus (De diligendo Deo,
em latim), que Bernardo conclui entre 1126 e 1127. Este último é uma
das expressões mais sucintas do tema central da sua teologia mística: a
união com Deus pelo amor puro.
Por
fim, também data deste período (1122) a conversão da irmã de São
Bernardo, Humbelina, que deixa de lado uma vida bastante mundana para
ingressar no convento beneditino de Julley-les-Nonnais.
Nessa época, as ideias em De diligendo Deo
ainda estavam amadurecendo no espírito do Doutor Melífluo, mas ele já
tinha publicado duas grandes obras. Trata-se dos sermões sobre a Virgem
Mãe (ou Homilias sobre o Evangelho Missus est) e do tratado sobre
os graus da humildade. Os sermões sobre a Bem-aventurada Virgem Maria
estão, sem dúvida, entre as mais belas páginas a saírem da pena de
Bernardo. Constituem um pequeno mas completo manual de Mariologia, um
dos primeiros a serem escritos. É um dos poucos livros que Bernardo não
escreveu por que lhe pediram ou por obediência; escreveu-o simplesmente
porque quis.
Em
resumo, no final do primeiro quarto do século XII Bernardo e o século
estavam prontos para se encontrar. Bernardo já era considerado santo,
taumaturgo e um teólogo cuja sabedoria ia além do mero estudo. Já tinha
uma autoridade tão grande que um cardeal insiste para que ele escrevesse
o livro sobre o amor de Deus, e o bispo de Sens lhe pede um tratado
sobre a vida espiritual voltado aos membros do episcopado. “Quem sou
eu”, exclama São Bernardo, “para escrever aos bispos!?” Mas acrescenta:
“Quem sou eu para não obedecer aos bispos?” Não hesitava em obedecer.
Mais
algumas linhas e terminamos esse esboço da sua vida. São Bernardo
provavelmente não pensava muito na heresia albingense, mas esta já
andava a causar muitos problemas no sul da França. No coração do
Languedoc, onde algumas das mais importantes basílicas romanescas da
época ainda reluzem ouro nas suas pedras inabaladas, o heresicarca Pedro
de Bruys armou um espetáculo surpreendente e infeliz. Era uma
Sexta-feira Santa, e a cena ocorreu em Saint Gilles-du-Gard. Pedro
reuniu uma multidão na praça pública, fez uma pilha de crucifixos e
ateou fogo em todos eles. Passou então a assar pedaços de carne naquela
chama, oferecendo-os depois ao público. Logo começou um tumulto, com
gente lutando por todos os lados. O próprio Pedro foi capturado e
lançado ao fogo, mas conseguiu escapar. Continuou a sua obra e preparou
caminho para o seu sucessor, Henry, a quem Bernardo combateria em 1145.
Em
1145, Eugênio III ascende ao trono de Pedro e torna-se o primeiro papa
cisterciense. Eugênio acompanhou Bernardo de volta à França desde a
Itália, numa das jornadas triunfais do santo no começo da década de
1130. Lá viveu por dez anos como um monge obscuro e silencioso. Bernardo
o enviou de volta à Itália em 1140 para ser o abade da trigésima quarta
fundação impulsionada por Claraval: a Abadia de Tre Fontane, nos
limites de Roma. Após a morte de Lúcio II, ferido durante a guerra civil
de Roma, cai sobre Eugênio e Bernardo a responsabilidade de apaziguar
os conflitos do mundo inteiro: muçulmanos no Oriente, revolucionários na
Itália, hereges no sul da França, problemas em toda a parte. É de
impressionar o que Bernardo escreveu em 1143 para o seu amigo Pedro, o
Venerável, abade de Cluny:
Decidi
ficar no meu mosteiro e não sair senão uma vez por ano, para o capitulo
geral da Ordem em Cister. Aqui, apoiado por tuas orações e consolado
por tua boa vontade, permanecerei pelos poucos dias que me restam, para
lutar até a chegada do tempo em que serei liberado do meu encargo (5).
(5) Carta CXLVII (PL 182).
Bernardo
também escreve ao seu filho espiritual, agora seu pai espiritual, o
Papa Eugênio III, dizendo-lhe, sem meias palavras, que ambos podem
poupar-se de muitos trabalhos se ao Abade de Claraval for permitido
descansar em paz no seu mosteiro. “Aquele que sugere que posso carregar
mais fardos, saiba que a minha situação sequer me permite equanimidade
para suportar aqueles que já tenho. Poupando-me, pouparás a ti mesmo”.
De fato, no ano de 1145 encontramos Bernardo e Eugênio às vésperas do seu maior e mais trágico esforço: a Segunda Cruzada.
A
Cruzada é obra de Bernardo. A intensidade singular do seu idealismo
religioso aparece aqui em toda a sua força e em toda a sua fraqueza.
Porque Bernardo prega a Cruzada com uma desconsideração sublime pelas
circunstâncias políticas. Comprometeu-se tão completamente com os
princípios em que acreditava que não conseguia ver nada além deles. Toda
a lógica prática da sua argumentação dependia do pressuposto de que
cada um dos cruzados levaria a cruz com uma fé tão pura e ardente como a
sua. Bernardo simplesmente assume que todos abraçariam os seus
princípios religiosos como ele próprio o fez, pondo-os em prática de uma
maneira digna dos santos.
O
que foi a Segunda Cruzada? Cinquenta anos antes, na infância de
Bernardo, quando Cister estava sendo fundada, a Primeira Cruzada
estabeleceu um estranho reino feudal de barões francos na Terra Santa.
Lá, em castelos não muito bem guarnecidos e cercados de nativos hostis e
incompreensivos, os francos sequer estavam unidos entre si. Tampouco
mantinham boas relações com a potência cristã mais próxima, o Império
Bizantino. Diante deles, havia uma poderosa coalizão muçulmana. Assim,
em 1144, os mafonistas, sob Ibn al Athir, atacaram e tomaram o
entreposto cristão de Edessa, Foi uma vitoria importante para o Islã,
tanto em termos políticos como religiosos.
Os
francos recorreram a Bizâncio, mas em vão. Em 1145, pediram ajuda a
Roma. Quando as notícias chegaram à França, o jovem Rei Luís VII, vendo
uma chance de alcançar a glória, propôs uma Cruzada. A sua proposta não
encontrou acolhimento. O rei voltou-se então para Bernardo de Claraval
para pedir-lhe que pregue a Cruzada. Bernardo não queria envolver-se
nisso. Recusou formalmente o pedido, acrescentando que mudaria de ideia
apenas por ordem do papa. Luís VII voltou-se então para Roma. Em 1146,
Bernardo levanta o estandarte da Cruz no santuário de Vezelay, na
Burgúndia.
É
neste momento que vemos Bernardo, o santo, como um instigante enigma,
como uma tentação e talvez como um escândalo. Neste momento, o ânimo
guerreiro que lhe corre nas veias desperta e força passagem para o
primeiro plano da sua vida, como uma sorridente gárgula romanesca que
empurra a folhagem nos capitéis dos pilares da clausura em Cluny. Também
essa energia faz parte da sua santidade. De fato, apesar de ser costume
(especialmente entre os monges) dizer que o Bernardo da Cruzada não era
o verdadeiro Bernardo, não estou muito certo disso. No fim das contas,
talvez Bernardo fosse mais ele mesmo em Vezelay do que em Claraval. Com
todo o seu coração indiviso estabelecido sobre um princípio magnífico – o
princípio da ordem, da autoridade divina comunicado aos homens para que
a paz da eternidade pudesse refletir-se mesmo sobre a volátil maré dos
tempos –, parece que Bernardo não se ateve muito aos detalhes temporais.
Em
todo o caso, não podemos ver o “verdadeiro” Bernardo se o dividimos em
polos opostos. A verdade é que o Bernardo de Vezelay é o mesmíssimo
homem que preparou-se, em pouco tempo, para pregar no final da vida os
maravilhosos sermões sobre o Cântico dos cânticos, sermões que
nada têm a ver com a guerra, mas com a paz sublime do casamento místico.
A contradição aparente entre Vezelay e o octogésimo quinto sermão In Cantica
fica incompreensível se imaginarmos que para São Bernardo a vida
interior é puramente uma questão de união pessoal, subjetiva e
individual da alma com Deus. A vida interior é a vida de toda a Igreja,
de todo o Corpo Místico de Cristo, compartilhada por todos os seus
membros. Mas a paz interior e invisível dos membros entre si e com Deus
não é, na mente de Bernardo, separável de uma ordem exterior e visível,
que reflita os propósitos de Deus no mundo e que garanta o efeito da sua
ação salvífica sobre as almas. Se São Bernardo pensasse que o único
caminho para a união com Deus era um caminho de abandono do mundo, de
ascetismo pessoal e recolhimento, de técnicas esotéricas, dificilmente
exortaria milhares de franceses, ingleses e alemães a pegarem em armas
contra o Islã a fim de garantirem a segurança da Europa cristã e o livre
acesso aos lugares santos na Palestina. Ele acredita que a Igreja pode
convocar os exércitos das nações cristãs para defender a ordem
estabelecida por Deus. Trata-se de um princípio que todos os católicos
aceitam. A dificuldade é, evidentemente, determinar qual configuração
política, se é que existe alguma, representa a ordem estabelecida por
Deus. A maneira com que Bernardo conduziu as Cruzadas surpreende-nos por
aparentemente ignorar essa questão importantíssima. Bernardo parece não
ter se preocupado com os detalhes políticos do problema.
É
bastante fácil dizer que São Bernardo tinha uma ideia drasticamente
simplista das consequencias da Cruzada. Talvez estejamos inclinados a
pensar que deveria ter lido a tradução do Corão que Pedro, o Venerável,
lhe enviou de Cluny, para que o estudasse e refutasse. Bernardo parece
não ter sentido qualquer necessidade de conhecer ou compreender qualquer
coisa sobre o Islã: parece que lhe bastava saber que os muçulmanos eram
“pagãos”. Mas recordemos que Bernardo pertence ao século XII, não ao
XX.
O
século XII e o século XX polos opostos. Um quase não pode compreender o
outro. O nosso tempo é totalmente pragmático, imerso completamente nas
contingências práticas. É raro ver discussões que não se atenham apenas
às circunstâncias. Bernardo não se sentia obrigado a fazer nada que não
fosse agir de acordo com o seu grandioso princípio. Se Deus julga que
convém recorrer aos exércitos para defender o seu Reino, e se o papa diz
a Bernardo para pregar uma Cruzada, logo o Abade de Claraval tem a
missão divina de pregar uma Cruzada, a qual cumprirá à risca. Vai
mostrar aos homens o significado das Guerras Santas como ele mesmo o vê e
tentará comunicar-lhes um pouco da sua fé tremenda. Cabe a outros
cuidar das alianças que os reis cristãos estabelecem entre si ou prever
que estas não serão feitas ou serão quebradas. Quanto aos cruzados, são
responsáveis por fazer da guerra uma Guerra Santa, que seja tanto uma
peregrinação quanto uma guerra, que lhes permita livrarem-se da punição
merecida pelos seus pecados por meio de uma vida sem pecado.
E
o que aconteceu de fato foi que apenas Bernardo cumpriu bem o seu
papel. Todos os outros falharam. Os assassinos e aventureiros que se
juntaram aos cruzados bem intencionados permanecerem, afinal, assassinos
e aventureiros. Franceses e alemães continuaram inimigos e lutaram
entre si por todo o caminho ao longo da Europa. O rei da França não
considerou possível estabelecer uma aliança com Rogério da Sicilia, o
que teria assegurado o transporte marítimo e talvez tivesse tornado a
presença de tantos ocidentais no Oriente próximo menos alarmante aos
olhos do imperador bizantino. Da maneira como as coisas se deram, os
exércitos da Cruz encontraram-se em Constantinopla, dando a impressão
que a capital no Bósforo era o verdadeiro objetivo da empreitada. Manuel
Comênio, o Basileu, fez o que pôde para garantir que não haveria um
exército de cruzados vitoriosos retornando por sua cidade. Para que
fosse uma Guerra Santa à maneira concebida por Bernardo, a Cruzada
deveria ter ao menos demonstrado alguma unidade entre os cristãos, o que
não houve em hipótese alguma. Toda a história da campanha está marcada
pela traição e o assassinato. “As promessas de Deus”, exclamaria
Bernardo, “não podem ficar no caminho da sua justiça” (6).
(6) De Consideratione, livro 2, cap. 1; PL 182, 745.
É
notável que São Bernardo não tenha desistido diante do fracasso dessa
Cruzada. Na verdade, estava já pronto para começar outra, da qual foi
nomeado líder, função que certamente exerceria. Dizem que os
cistercienses intervieram e cuidaram para que ele fosse dispensado. A
sua energia foi irreprovável e milagrosa até o fim. Parece que não teve
rivais quando se tratava de vencer a doença para realizar coisas
impossíveis. Mesmo na primavera de 1153, no seu leito de morte,
levantou-se e tomou a estrada porque ouviu que havia guerra em Metz. Mas
essa seria a sua última empresa. Faleceu no seu mosteiro em 20 de
agosto de 1153, e foi chorado por todo o mundo da sua época. Foi
canonizado pelo Papa Alexandre III em 1174.
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