07 setembro 2004

Bernardo: o homem e o santo

São Bernardo de Clairvaux, Abade e Doutor da Igreja

 

Por Thomas Merton

Os santos são sempre um mistério. Não se pode acabar de compreender completamente o que faz sua personalidade única e, ao mesmo tempo, universal.
O enigma da santidade é a tentação e muitas vezes a ruína dos historiadores. Isso ainda é mais verdadeiro para um santo como Bernardo de Claraval, que dominou toda a história do seu tempo. A santidade nasce da luta – de contradições que se resolvem na união. O historiador é tentado a ver em Bernardo apenas a luta entre as forças sociais e culturais encarnadas nele: pois Bernardo continha todo o século XII em si. Isso quer dizer que incorporou e uniu em si duas outras grandes épocas, vivendo na transição entre ambas. A sua vida e a sua carreira, religiosa e política, representavam a tentativa de resolver, tanto para os seus contemporâneos como para ele, os problemas daquele tempo. Não digo que Bernardo atingiu a solução: nenhuma época, nenhuma geração, nenhum homem, vê a solução para todos os seus problemas. São Bernardo fracassou muitas vezes. Os seus fracassos foram tão grandes, significativos e, em última análise, construtivos como os seus êxitos. Quase tudo que fez moldou tremendamente o curso da história.
Não basta ver em Bernardo a união entre o romanesco e o gótico, a transição entre São Gregório VII e São Francisco de Assis, entre o século X e o século XIII. Uma explicação brilhante, mas insuficiente, do grandioso trabalho levado a cabo por São Bernardo atribui o seu gênio, a sua energia e a sua santidade a uma tensão dialética entre essas duas grandes forças espirituais que se enfrentavam na sua alma. Sim, a teoria é insuficiente. Ainda assim, as forcas estavam lá, e devemos levá-las em consideração.
Por um lado, Bernardo era um nobre da Burgúndia, um guerreiro nascido para ser cavaleiro ou prelado. Nasceu em 1090, num castelo pouco distante de Dijon. Então, os muros e torres da basílica monástica de Cluny apontavam imponentemente para o céu. Cluny era a expressão viva da grandiosa estrutura eclesiástica legada pelo Papa Gregório VII, falecido cinco anos antes; uma estrutura unificada e reformada. Cluny era sinônimo de poder, autoridade, centralização e lei. A sua grandeza, o luxo da sua liturgia, a vastidão do seu império monástico constituíam a imagem externa do reinado de Cristo sobre a sua Igreja, da penetração do seu domínio em cada área da vida e da cultura humanas. A Cluny de São Hugo e a Roma de São Gregório VII faziam parte de um mundo que acreditava que São Pedro tinha duas espadas: o seu poder espiritual e o seu poder temporal. Ninguém ficava surpreso ao vê-lo manejar ambas.
Ao mesmo tempo, estava nascendo uma nova geração. O feudalismo estava prestes a despedaçar-se; aproximava-se o tempo das comunas, guildas, catedrais e universidades. O jovem Bernardo de Fontaines, que poderia ter arranjado para si um cargo alto na Igreja ou ganhado fama nas suas escolas, renunciou à fama e à grandeza, à sua herança e às suas oportunidades e buscou uma solidão que as torres de Cluny desdenhavam. O jovem temia servir na corte do grande Rei por sentir-se chamado a algo muito maior que o poder. Acreditava no Cristo Pantocrator, mas intuía que esse grande Senhor revelar-se-ia de uma maneira bastante diferente da floresta de Cister. Aquele que Bernardo buscava na pobreza, no silêncio e na solidão era o Verbum Sponsus, o Deus que se manifesta ao mundo inteiro não apenas como Rei e Juiz, mas como o Noivo que visita a alma humilde e solitária, no segredo da oração.
Havia, pois, em Bernardo uma atração mais forte, uma corrente mais poderosa que o afastou dos esplendores litúrgicos de Cluny e das sutilezas das escolas. Tratava-se da corrente da mística, da ascética, da liberdade, da espiritualidade e do personalismo. Uma corrente que começava a fluir em muitas direções: uma delas conduzia a um Francisco de Assis; a outra, à heresia dos albingenses.
São Bernardo parece ter pensado ser possível renunciar completamente ao primeiro elemento da sua alma e viver apenas pelo segundo. As coisas não seriam assim tão simples. A sua própria reputação de místico, asceta, taumaturgo e, numa palavra, santo fez com que lhe fosse impossível evitar que se tornasse um sacerdote notável, um defensor da autoridade, da lei, do papado, um homem de Deus na política, um pregador das Cruzadas. Mais que isso: o seu espírito não estava feito para a piedade individualista. Por ser muito humano e muito místico, Bernardo era também, essencialmente, um homem da Igreja – Vir Ecclesiae.
Repassaremos muito brevemente alguns detalhes da sua vida extremamente ativa. Apesar de a tensão entre essas duas potências aparentemente contraditórias não explicar a vida, as realizações ou a santidade de São Bernardo, é quase certo que tenha sido um fator na sua santificação. Como dissemos: toda a santidade nasce da luta.
Explicar a santidade de Bernardo enumerando as suas obras, conflitos e problemas seria como tentar explicar a santidade de Teresa de Lisieux dizendo que uma das suas irmãs espirrou água suja nas suas roupas na lavanderia do convento e que outra a distraia rezando o rosário em voz alta durante a sua oração mental. São outros os dois elementos a serem conciliados e unidos nos santos: o humano e o divino. Neste conflito, o humano é tomado de assalto pelo divino, atravessado por ele e mesmo elevado corporalmente a uma nova dimensão. Mas sempre no mistério. Não podemos ver o que acontece. Nenhum homem pode ver dentro da alma alheia. Mal pode ver dentro da própria alma!
Quando falamos de São Bernardo, temos necessariamente de ater-nos mais ao que sabemos do que ao que não podemos saber. Mas ao apontarmos os acidentes e efeitos visíveis à superfície de uma vida de santidade profunda e invisível, tenhamos em mente que o essencial é aquilo que não vemos. Qualquer coisa fora da periferia do mistério central, que possamos ver claramente na vida do santo, na verdade, pouco importa se não for um tipo de sinal da sua santidade interior. Mais precisamente, os pensamentos, atos e virtudes do santo não são maravilhosos em si mesmos; a sua finalidade é serem lampejos saídos do cerne do mistério de Deus. Pois o santo não representa a si próprio, ou o seu tempo, ou a sua nação: é um sinal de Deus para a sua geração e para todas as gerações por vir.
Além do mais, santidade é vida sobrenatural. Os santos não apenas têm vida, mas também dão vida. Aqueles que receberem vida deles conhecem melhor a sua santidade. Os contemporâneos de Bernardo não tinham dúvidas sobre o que recebiam dele. Ateava fogo onde estivesse. O poder de Bernardo era mais que a influência de um gênio ou a eficácia persuasiva de uma virtude heroica: era carisma. Deus agia nele, fazia coisas tão maravilhosas que os homens sabiam ser Ele quem trabalhava, não Bernardo. A graça do Deus que tomou posse desse homem frágil incendiava os corações de todos aqueles que o ouviam falar.
Cabe a nós tentar entender a santidade de São Bernardo não apenas estudando da sua biografia, mas captando algo do seu efeito vivificador. O papa Pio XII publicou uma encíclica exatamente com o objetivo de ajudar-nos nessa tarefa: Doctor Mellifluus (1953). Nela, São Bernardo é tratado, sobretudo, como um Doutor e como um “Padre” da Igreja, e não como apenas uma grande figura do seu tempo.
A liturgia da festa de São Bernardo no missal e no breviário dos cistercienses mostra a enorme fé da Igreja no poder vivificador exercido, pela Comunhão dos Santos, por aqueles que ela venera como Padres e Doutores. Ensina que Cristo comunica-se aos homens por meio da ação ministerial dos seus santos, não apenas quando estão vivos, mas também depois da morte (1). Assim cantam os monges num dos seus responsórios dirigidos a São Bernardo: “Entraste nas potências do Senhor e agora, tornado um intercessor mais poderoso, obtém-nos uma parcela na luz e na doçura de que agora gozas!” (Introisti in potentias Domini, et jam potentior ad impetrandum, fix nos ejus qua frueris lucis suavitatisque participes)(2).

(1) Cf. o artigo sobre São Bernardo no Dictionnaire de Spiritualité (vol. I, col. 1491) de Anselme le Bail, OCSO.
(2) Breviário Cisterciense, Matinas da Festa de São Bernardo, nono responsório.

Seria inútil tentar, em tão curto espaço, listar mesmo alguns dos grandes feitos de São Bernardo, esboçar em traços largos as suas viagens a serviço de Deus, descrever as suas reformas monásticas, as suas fundações, as suas intervenções nos assuntos dos reis, bispos e papas. Mas é preciso que tenhamos alguma ideia da sua vida e do seu caráter. A maneira mais fácil de fazê-lo é observá-lo em três pontos decisivos da sua trajetória. Abriremos o livro da sua vida somente em três pontos: primeiro, em 1115, quando Bernardo é um jovem abade de 25 anos; depois, em 1124, um pouco além da metade da sua vida, no divisor de águas da sua trajetória; por fim, em 1145, quando Bernardo é, na prática, o papa.
São Bernardo salva a vida de um mosteiro recém-fundado, Cister (Citeaux, em francês), ao nele ingressar com mais trinta companheiros em 1112. A casa, que parecia prestes a desaparecer em 1111, torna-se forte o bastante para fundar outros três mosteiros em 1114 e 1115. Em junho de 1115, logo depois da fundação de Morimod, Bernardo é enviado por Estevão Harding para começar um mosteiro num ensolarado vale no platô de Langres, entre as fronteiras da Burgúndia e da Champanha. O local viria a tornar-se famoso sob o nome de Claraval, o “Vale Claro”; famoso por causa do seu abade Bernardo, por causa dos santos que lá viverem, da vida que levavam e por causa do Deus que encontraram. Tanto Claraval como Bernardo significavam sobretudo uma coisa: a grande renovação da mística no século XII, uma renascença espiritual cujos efeitos atingiram todas as outras renascenças da época. Pois Bernardo viria a influenciar tudo, desde a política ao roman courtois e toda a tendência humanística ao “amor cortês”. Deixou suas marcas no canto gregoriano, na vida clerical, e em todo o desenvolvimento da arquitetura e da arte góticas. Um dos sinais de uma renovação espiritual realmente espiritual é que ela afeta todos os tipos de vida e atividade ao seu redor, inspira novas maneiras de arte, desperta uma nova poesia e uma nova música, chega mesmo a fazer os apaixonados falarem um ao outro numa nova linguagem e a pensar um no outro com um novo tipo de respeito.
Mas em 1115, Claraval ainda não é famosa. Bernardo vive ali com mais doze companheiros, em pequenas cabanas de madeira sob as árvores da floresta. Tinha acabado de ser ordenado sacerdote e sagrado abade pelo bispo de Châlons-sur-Marne: o filósofo Guilherme de Champeaux. E Guilherme conseguirá que o Capítulo Geral da ordem colocasse sobre os seus cuidados a saúde de São Bernardo. O jovem abade já começava a desfazer-se sob o peso de uma vida em que a austeridade cisterciense era multiplicada por vinte pela indigência, a falta de comida e pelo seu próprio ascetismo implacável. Bernardo é forçado a viver separado do resto da comunidade durante os primeiros anos da nova fundação, num casebre que serve também de enfermaria. Quase morre ao cair nas mãos de um médico charlatão que morava nas proximidades. Ao mesmo tempo, é procurado por postulantes e amigos que chegavam a Claraval para ouvir as suas meditações sobre os profundos mistérios do Cântico dos cânticos, livro que um dia comentaria na sala capitular de uma grande abadia de pedra que os seus monges logo edificariam. Não tem qualquer motivo para pensar que a sua vida não seria senão uma vida contemplativa, perturbada apenas pelos cuidados inevitáveis do seu encargo de abade e dedicada a produzir frutos silenciosos por meio da formação e direção dos seus monges.
Em 1124, nove anos mais tarde, Claraval ainda não é o mosteiro grande e bem estabelecido que naturalmente associamos ao nome de Bernardo. Ainda anseia por segurança, e as sólidas bases do seu desenvolvimento futuro são lançadas por dois irmãos de Bernardo, os despenseiros Gerardo e Guy. Ambos transformaram os pastos e as terras florestais doadas ao mosteiro num sistema de granjas, ou fazendas monásticas mantidas pelos irmãos leigos. Claraval podia, ao menos, sustentar-se a si própria, e com o apoio do grande príncipe da região, Thibaud da Champanha, o mosteiro logo passaria a ser mais próspero.
Claraval não faz imediatamente muitas fundações. Dos setenta novos mosteiros que seriam fundados diretamente por São Bernardo, apenas três já tinham sido estabelecidos durante a primeira década de Claraval. Trois Fontaines surgiu em outubro de 1118. Um ano mais tarde, no outono de 1119, fundou-se Fontenay. Foigny, onde São Bernardo “excomungou” as moscas, apareceu dois anos mais tarde, em 1121. Parece que naquele tempo São Bernardo hesitava em fazer muitas fundações. É certo que, nessa época, resiste à propagação da ordem na Espanha, recusa-se a fundar uma casa na Terra Santa e evita fazer mais na França até 1128, quando veria que era inútil remar contra a corrente. Neste ano, funda Igny em março e Reigny em setembro. Nos começos da década de 1130, estende as fundações à Alemanha e à Inglaterra (Rievaulx, 1132) e é o primeiro a enviar uma colônia cisterciense à Espanha (Moruela, 1132) apesar da sua oposição inicial.
Tudo isso ainda não tinha acontecido em 1124. Mas Bernardo estava próximo do final da sua “formação” providencial que o preparara para o seu grande trabalho na Igreja de Deus. Dizer que dez anos de saúde precária, insegurança, sofrimento e oração estavam chegando ao fim não implica que a sua saúde melhoraria, que o seu sofrimento não aumentaria ou que a sua vida de oração não viria a aprofundar-se. Bernardo, porém, teria mais força para viajar e entrar na vida pública.
Parte da sua “formação” foi o seu aprendizado sobre a natureza humana. Em primeiro lugar, teve de aprender que o homem não é um anjo, que os monges ainda têm corpos e que, apesar de ele ter tentado não apenas mortificar os seus desejos, mas matar os próprios sentidos, é melhor recordar que o homem é humano e que a sua natureza humana deve ser divinizada pela graça, não destruída por ela. Assim, o santo que sempre fora espiritual e puro demais para sentir qualquer tentação da carne aprendeu a não se deixar surpreender pelo fato de todos os homens não serem exatamente como ele. Nas suas próprias palavras, aprendeu o valor daquilo que chamou de “a fuga da justiça para a misericórdia”. Descobriu que a abnegação é incompleta se não conduz à compreensão simpática do próximo, à misericórdia, à caridade; aprendeu, enfim, que o “unguento” da compaixão fraterna é necessário para mostrar aos seus monges quão bom e agradável é para os irmãos viver juntos em unidade [Cf. Sal 132, 1].
Por fim, suporta grandes provações ao ver pessoas em quem confiava abandonar a Ordem que encarnava todos os seus ideais monásticos. O seu jovem sobrinho Roberto, que o acompanhou a Cister e fizera parte da pequena colônia que iniciou Claraval, “apostata” em 1119, fugindo para a vida opulenta e relativamente fácil de Cluny. A primeira, e uma das mais longas, carta de São Bernardo presente nas suas obras completas é endereçada a Roberto, pedindo-lhe que volte à austeridade de Cister:
Se as peliças finas e de qualidade, os tecidos sutis e preciosos, as luvas grandes e os capuzes largos, as capas de pele e as estamenhas suaves, fazem um santo, o que faço eu que não te sigo? Mas tudo isso serve de alívio para os fracos e não são armas de combatentes. Os que vestem trajes delicados estão nas cortes dos reis. O vinho e os seus semelhantes, o mosto e a banha servem ao corpo, não ao espírito. Não é aquilo que sai das panelas que engorda a alma. Pois muitos irmãos nossos serviram muito tempo a Deus no Egito sem comer peixe. A pimenta, o gengibre, o cominho, a sálvia e muitas outras especiarias para molhos agradam ao paladar, mas inflamam a luxúria. Acaso farias a minha segurança depender de tais coisas? Podes passar com tranquilidade a juventude entre elas? O sal e a fome são condimentos suficientes para um homem que vive sóbria e sabiamente.
O estilo da carta é próprio de Bernardo, especialmente durante os primeiros anos de Claraval (3).

(3) Carta I (PL 182).

O ano de 1125, porém, traz consigo um abandono muito mais perigoso para os cistercienses do que o caso de um monge que foge para Cluny. Um dos companheiros de Bernardo quando da sua chegada a Cister foi Arnoldo, o primeiro abade de Morimond. Os dois jovens cistercienses começaram a carreira abacial no mesmo ano, 1115, e enfrentaram as mesmas provas, dificuldades e decepções. E de repente vem a notícia de que o Abade de Morimond desapareceu do seu mosteiro, levando alguns monges consigo, e foi para a Terra Santa, onde queria fundar uma casa sem pedir nenhuma permissão. Na verdade, os fugitivos nunca chegaram à Palestina. Arnoldo morreu na Bélgica depois de ignorar uma carta que Bernardo lhe endereçou. Ao abade de Claraval coube a missão de reunir os outros monges e trazê-los de volta. Foi um acontecimento importante na vida de São Bernardo e da Ordem. Morimond era um dos pilares da nova estrutura, e havia razão para temer que toda a Ordem viesse a ruir com a queda de Arnoldo.
Durante as suas andanças para acertar as coisas após a apostasia de Arnoldo, Bernardo perde o seu prior, Gaucher, que havia sido enviado à Claraval para substituí-lo. Mas pouco tempo depois, essa perda é reparada e Claraval ganha um dos seus maiores priores: Godofredo de la Roche retorna de Fontenay, onde era abade, e assume o cargo. Ele seria um dos mais valiosos cooperadores e ajudantes de São Bernardo ao longo dos anos de atividade que estavam por vir.
Nessa mesma época, São Bernardo também se ocupa de outras ordens religiosas. Tinha muitos amigos beneditinos. O mais próximo deles era Guilherme, abade de Saint Thierry, nas fronteiras de Rheims. Por muitos anos Guilherme foi um visitante frequente de Claraval, a ponto de insistir em querer tornar-se um cisterciense. Mas não podemos pensar que Bernardo queria que todos os beneditinos se fizessem cistercienses. Neste caso, não era nem um pouco favorável à mudança. E disse a Guilherme numa carta:
Para dizer-te o que penso (sobre o teu plano), digo-te, a não ser que esteja enganado, tratar-se de algo que não te aconselho a tentar e que não conseguirias levar a cabo. De fato, desejo para ti aquilo que há muito já não é segredo para mim e aquilo que tu mesmo desejas para ti. Todavia, pondo de lado o que ambos desejamos, como convém que façamos, é mas seguro para mim e mais vantajoso para ti que eu te aconselhe naquilo que penso ser o desejo de Deus. Portanto, digo que te deves ater àquilo que tens, permanecer onde estás, e tentar ajudar aos que estão sob o teu governo. Não tentes escapar da responsabilidade do teu encargo enquanto ainda o puderes exercer para o benefício dos teus governados. Ai de ti se os governa e não os ajuda; pior ainda se não os ajuda por esquivar-se do fardo de governá-los (4).

(4) Carta LXXXVIII (PL 182).

Outro amigo próximo de São Bernardo era o fundador da Ordem Premostratense, São Norberto, futuro bispo de Magdeburgo. Desde a sua ordenação sacerdotal, no mesmo ano que a de Bernardo, Norberto conquistou um grande fama como pregador e asceta. Em 1120, iniciou uma comunidade religiosa na diocese de Laon, não muito distante de Claraval. O bispo de Laon, que presenteou Norberto com a propriedade de Premontré, também deu a Bernardo o terreno onde foi fundado o mosteiro de Foigny. Em 1124, São Bernardo presenciou a instalação dos premostratenses no mosteiro de São Martim de Laon, e neste mesmo ano Norberto disse a Bernardo que haveria em breve uma grande crise na Igreja. Profetizou o cisma de Anacleto II em 1130, fato que tiraria Bernardo do seu claustro para metê-lo na barafunda do mundo.
O ano de 124 provavelmente também é a data da viagem de São Bernardo a Grenoble e à Grande Cartuxa. A sua amizade com Guigo, ou Guy, o legislador e organizador da Ordem Cartuxa, produziria frutos extraordinários para ambos. Duas obras literárias permanecem até hoje como testemunhos dessa abundância: as austeras e profundas Meditações, de Guigo, e Sobre o amor de Deus (De diligendo Deo, em latim), que Bernardo conclui entre 1126 e 1127. Este último é uma das expressões mais sucintas do tema central da sua teologia mística: a união com Deus pelo amor puro.
Por fim, também data deste período (1122) a conversão da irmã de São Bernardo, Humbelina, que deixa de lado uma vida bastante mundana para ingressar no convento beneditino de Julley-les-Nonnais.
Nessa época, as ideias em De diligendo Deo ainda estavam amadurecendo no espírito do Doutor Melífluo, mas ele já tinha publicado duas grandes obras. Trata-se dos sermões sobre a Virgem Mãe (ou Homilias sobre o Evangelho Missus est) e do tratado sobre os graus da humildade. Os sermões sobre a Bem-aventurada Virgem Maria estão, sem dúvida, entre as mais belas páginas a saírem da pena de Bernardo. Constituem um pequeno mas completo manual de Mariologia, um dos primeiros a serem escritos. É um dos poucos livros que Bernardo não escreveu por que lhe pediram ou por obediência; escreveu-o simplesmente porque quis.
Em resumo, no final do primeiro quarto do século XII Bernardo e o século estavam prontos para se encontrar. Bernardo já era considerado santo, taumaturgo e um teólogo cuja sabedoria ia além do mero estudo. Já tinha uma autoridade tão grande que um cardeal insiste para que ele escrevesse o livro sobre o amor de Deus, e o bispo de Sens lhe pede um tratado sobre a vida espiritual voltado aos membros do episcopado. “Quem sou eu”, exclama São Bernardo, “para escrever aos bispos!?” Mas acrescenta: “Quem sou eu para não obedecer aos bispos?” Não hesitava em obedecer.
Mais algumas linhas e terminamos esse esboço da sua vida. São Bernardo provavelmente não pensava muito na heresia albingense, mas esta já andava a causar muitos problemas no sul da França. No coração do Languedoc, onde algumas das mais importantes basílicas romanescas da época ainda reluzem ouro nas suas pedras inabaladas, o heresicarca Pedro de Bruys armou um espetáculo surpreendente e infeliz. Era uma Sexta-feira Santa, e a cena ocorreu em Saint Gilles-du-Gard. Pedro reuniu uma multidão na praça pública, fez uma pilha de crucifixos e ateou fogo em todos eles. Passou então a assar pedaços de carne naquela chama, oferecendo-os depois ao público. Logo começou um tumulto, com gente lutando por todos os lados. O próprio Pedro foi capturado e lançado ao fogo, mas conseguiu escapar. Continuou a sua obra e preparou caminho para o seu sucessor, Henry, a quem Bernardo combateria em 1145.
Em 1145, Eugênio III ascende ao trono de Pedro e torna-se o primeiro papa cisterciense. Eugênio acompanhou Bernardo de volta à França desde a Itália, numa das jornadas triunfais do santo no começo da década de 1130. Lá viveu por dez anos como um monge obscuro e silencioso. Bernardo o enviou de volta à Itália em 1140 para ser o abade da trigésima quarta fundação impulsionada por Claraval: a Abadia de Tre Fontane, nos limites de Roma. Após a morte de Lúcio II, ferido durante a guerra civil de Roma, cai sobre Eugênio e Bernardo a responsabilidade de apaziguar os conflitos do mundo inteiro: muçulmanos no Oriente, revolucionários na Itália, hereges no sul da França, problemas em toda a parte. É de impressionar o que Bernardo escreveu em 1143 para o seu amigo Pedro, o Venerável, abade de Cluny:
Decidi ficar no meu mosteiro e não sair senão uma vez por ano, para o capitulo geral da Ordem em Cister. Aqui, apoiado por tuas orações e consolado por tua boa vontade, permanecerei pelos poucos dias que me restam, para lutar até a chegada do tempo em que serei liberado do meu encargo (5).

(5) Carta CXLVII (PL 182).

Bernardo também escreve ao seu filho espiritual, agora seu pai espiritual, o Papa Eugênio III, dizendo-lhe, sem meias palavras, que ambos podem poupar-se de muitos trabalhos se ao Abade de Claraval for permitido descansar em paz no seu mosteiro. “Aquele que sugere que posso carregar mais fardos, saiba que a minha situação sequer me permite equanimidade para suportar aqueles que já tenho. Poupando-me, pouparás a ti mesmo”.
De fato, no ano de 1145 encontramos Bernardo e Eugênio às vésperas do seu maior e mais trágico esforço: a Segunda Cruzada.
A Cruzada é obra de Bernardo. A intensidade singular do seu idealismo religioso aparece aqui em toda a sua força e em toda a sua fraqueza. Porque Bernardo prega a Cruzada com uma desconsideração sublime pelas circunstâncias políticas. Comprometeu-se tão completamente com os princípios em que acreditava que não conseguia ver nada além deles. Toda a lógica prática da sua argumentação dependia do pressuposto de que cada um dos cruzados levaria a cruz com uma fé tão pura e ardente como a sua. Bernardo simplesmente assume que todos abraçariam os seus princípios religiosos como ele próprio o fez, pondo-os em prática de uma maneira digna dos santos.
O que foi a Segunda Cruzada? Cinquenta anos antes, na infância de Bernardo, quando Cister estava sendo fundada, a Primeira Cruzada estabeleceu um estranho reino feudal de barões francos na Terra Santa. Lá, em castelos não muito bem guarnecidos e cercados de nativos hostis e incompreensivos, os francos sequer estavam unidos entre si. Tampouco mantinham boas relações com a potência cristã mais próxima, o Império Bizantino. Diante deles, havia uma poderosa coalizão muçulmana. Assim, em 1144, os mafonistas, sob Ibn al Athir, atacaram e tomaram o entreposto cristão de Edessa, Foi uma vitoria importante para o Islã, tanto em termos políticos como religiosos.
Os francos recorreram a Bizâncio, mas em vão. Em 1145, pediram ajuda a Roma. Quando as notícias chegaram à França, o jovem Rei Luís VII, vendo uma chance de alcançar a glória, propôs uma Cruzada. A sua proposta não encontrou acolhimento. O rei voltou-se então para Bernardo de Claraval para pedir-lhe que pregue a Cruzada. Bernardo não queria envolver-se nisso. Recusou formalmente o pedido, acrescentando que mudaria de ideia apenas por ordem do papa. Luís VII voltou-se então para Roma. Em 1146, Bernardo levanta o estandarte da Cruz no santuário de Vezelay, na Burgúndia.
É neste momento que vemos Bernardo, o santo, como um instigante enigma, como uma tentação e talvez como um escândalo. Neste momento, o ânimo guerreiro que lhe corre nas veias desperta e força passagem para o primeiro plano da sua vida, como uma sorridente gárgula romanesca que empurra a folhagem nos capitéis dos pilares da clausura em Cluny. Também essa energia faz parte da sua santidade. De fato, apesar de ser costume (especialmente entre os monges) dizer que o Bernardo da Cruzada não era o verdadeiro Bernardo, não estou muito certo disso. No fim das contas, talvez Bernardo fosse mais ele mesmo em Vezelay do que em Claraval. Com todo o seu coração indiviso estabelecido sobre um princípio magnífico – o princípio da ordem, da autoridade divina comunicado aos homens para que a paz da eternidade pudesse refletir-se mesmo sobre a volátil maré dos tempos –, parece que Bernardo não se ateve muito aos detalhes temporais.
Em todo o caso, não podemos ver o “verdadeiro” Bernardo se o dividimos em polos opostos. A verdade é que o Bernardo de Vezelay é o mesmíssimo homem que preparou-se, em pouco tempo, para pregar no final da vida os maravilhosos sermões sobre o Cântico dos cânticos, sermões que nada têm a ver com a guerra, mas com a paz sublime do casamento místico. A contradição aparente entre Vezelay e o octogésimo quinto sermão In Cantica fica incompreensível se imaginarmos que para São Bernardo a vida interior é puramente uma questão de união pessoal, subjetiva e individual da alma com Deus. A vida interior é a vida de toda a Igreja, de todo o Corpo Místico de Cristo, compartilhada por todos os seus membros. Mas a paz interior e invisível dos membros entre si e com Deus não é, na mente de Bernardo, separável de uma ordem exterior e visível, que reflita os propósitos de Deus no mundo e que garanta o efeito da sua ação salvífica sobre as almas. Se São Bernardo pensasse que o único caminho para a união com Deus era um caminho de abandono do mundo, de ascetismo pessoal e recolhimento, de técnicas esotéricas, dificilmente exortaria milhares de franceses, ingleses e alemães a pegarem em armas contra o Islã a fim de garantirem a segurança da Europa cristã e o livre acesso aos lugares santos na Palestina. Ele acredita que a Igreja pode convocar os exércitos das nações cristãs para defender a ordem estabelecida por Deus. Trata-se de um princípio que todos os católicos aceitam. A dificuldade é, evidentemente, determinar qual configuração política, se é que existe alguma, representa a ordem estabelecida por Deus. A maneira com que Bernardo conduziu as Cruzadas surpreende-nos por aparentemente ignorar essa questão importantíssima. Bernardo parece não ter se preocupado com os detalhes políticos do problema.
É bastante fácil dizer que São Bernardo tinha uma ideia drasticamente simplista das consequencias da Cruzada. Talvez estejamos inclinados a pensar que deveria ter lido a tradução do Corão que Pedro, o Venerável, lhe enviou de Cluny, para que o estudasse e refutasse. Bernardo parece não ter sentido qualquer necessidade de conhecer ou compreender qualquer coisa sobre o Islã: parece que lhe bastava saber que os muçulmanos eram “pagãos”. Mas recordemos que Bernardo pertence ao século XII, não ao XX.
O século XII e o século XX polos opostos. Um quase não pode compreender o outro. O nosso tempo é totalmente pragmático, imerso completamente nas contingências práticas. É raro ver discussões que não se atenham apenas às circunstâncias. Bernardo não se sentia obrigado a fazer nada que não fosse agir de acordo com o seu grandioso princípio. Se Deus julga que convém recorrer aos exércitos para defender o seu Reino, e se o papa diz a Bernardo para pregar uma Cruzada, logo o Abade de Claraval tem a missão divina de pregar uma Cruzada, a qual cumprirá à risca. Vai mostrar aos homens o significado das Guerras Santas como ele mesmo o vê e tentará comunicar-lhes um pouco da sua fé tremenda. Cabe a outros cuidar das alianças que os reis cristãos estabelecem entre si ou prever que estas não serão feitas ou serão quebradas. Quanto aos cruzados, são responsáveis por fazer da guerra uma Guerra Santa, que seja tanto uma peregrinação quanto uma guerra, que lhes permita livrarem-se da punição merecida pelos seus pecados por meio de uma vida sem pecado.
E o que aconteceu de fato foi que apenas Bernardo cumpriu bem o seu papel. Todos os outros falharam. Os assassinos e aventureiros que se juntaram aos cruzados bem intencionados permanecerem, afinal, assassinos e aventureiros. Franceses e alemães continuaram inimigos e lutaram entre si por todo o caminho ao longo da Europa. O rei da França não considerou possível estabelecer uma aliança com Rogério da Sicilia, o que teria assegurado o transporte marítimo e talvez tivesse tornado a presença de tantos ocidentais no Oriente próximo menos alarmante aos olhos do imperador bizantino. Da maneira como as coisas se deram, os exércitos da Cruz encontraram-se em Constantinopla, dando a impressão que a capital no Bósforo era o verdadeiro objetivo da empreitada. Manuel Comênio, o Basileu, fez o que pôde para garantir que não haveria um exército de cruzados vitoriosos retornando por sua cidade. Para que fosse uma Guerra Santa à maneira concebida por Bernardo, a Cruzada deveria ter ao menos demonstrado alguma unidade entre os cristãos, o que não houve em hipótese alguma. Toda a história da campanha está marcada pela traição e o assassinato. “As promessas de Deus”, exclamaria Bernardo, “não podem ficar no caminho da sua justiça” (6).

(6) De Consideratione, livro 2, cap. 1; PL 182, 745.

É notável que São Bernardo não tenha desistido diante do fracasso dessa Cruzada. Na verdade, estava já pronto para começar outra, da qual foi nomeado líder, função que certamente exerceria. Dizem que os cistercienses intervieram e cuidaram para que ele fosse dispensado. A sua energia foi irreprovável e milagrosa até o fim. Parece que não teve rivais quando se tratava de vencer a doença para realizar coisas impossíveis. Mesmo na primavera de 1153, no seu leito de morte, levantou-se e tomou a estrada porque ouviu que havia guerra em Metz. Mas essa seria a sua última empresa. Faleceu no seu mosteiro em 20 de agosto de 1153, e foi chorado por todo o mundo da sua época. Foi canonizado pelo Papa Alexandre III em 1174.


Tradução: Cristian Clemente

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