“Que
tipo de livro é esse?” Esta pergunta não
pode ser respondida sem levar em conta a afirmação muito peculiar
que cristãos, judeus e até muçulmanos fazem sobre a Bíblia:
afirmação que causa indignação a muitas pessoas modernas.
Afirmam que esse livro é diferente de todos os outros, e que
o próprio destino do ser humano depende dele.
Não
é possível entender nada sobre a Bíblia sem encarar o fato de que
essa afirmação é feita a sério, e de que a indignação que causa
também é totalmente séria. Nenhuma das
duas pode ser menosprezada. É da própria
natureza da Bíblia deixar a mente humana confusa, perplexa e
surpresa. Portanto, o leitor que abre a
Bíblia deve estar preparado para sentir desorientação, confusão,
incompreensão e talvez indignação.
A
Bíblia é, sem dúvida alguma, um dos livros mais insatisfatórios
já escritos, pelo menos até o leitor conciliar-se com ele de forma
muito especial. Mas é difícil chegar a um
acordo com esse livro. Talvez seja muito
mais fácil se a gente só fingir que a questão está
resolvida de antemão: ouvimos outros
dizerem que é um “Livro Sagrado”, acreditamos neles e decidimos
não nos envolver. Que o leiam nas igrejas:
nós os respeitamos por isso, e respeitamos seu livro!
Deixamos que “eles” o leiam e às vezes talvez ouçamos
respeitosamente sua leitura. Podemos até
chegar a ler um pouquinho com eles, da maneira como “eles” o
leem.
Assim,
desde o início, tendemos a adotar, mesmo quando temos fé, uma
posição curiosamente alienada em relação à Bíblia.
Nós nos aproximamos da Bíblia cautelosamente, levando em
conta as afirmações que outros fazem a seu respeito.
Essas afirmações não podem ser ignoradas.
Mas são alegações de outros que nos dizem do que
precisamos antes mesmos que tenhamos a ocasião de determinar nossas
próprias necessidades e formular nossas próprias perguntas.
E eles apontam o que a Bíblia requer de nós antes que a
própria Bíblia tenha a oportunidade de dar a conhecer o que ela
mesma diz.
No
entanto, não devemos achar que somos obrigados a aceitar de forma
acrítica todas as alegações oficiais ou de grupos.
Na verdade, devemos ter a coragem de nos dispor a distinguir
as afirmações que as pessoas de fé fazem sobre a Bíblia e as
afirmações, talvez até mais vultosas, que fazem sobre si mesmas
por causa da Bíblia. Obviamente, aqui não
é o lugar para examinar estas últimas. Basta
saber que existem e admitir que as pessoas de fé tendem a circundar
a Bíblia de problemas ainda maiores que os que esta mesma apresenta.
Desde
o início, portanto, precisamos esclarecer o significado da afirmação
básica da Bíblia de que é “a palavra de Deus”.
Devemos entender que esta afirmação não significa que a
Bíblia seja um livro totalmente desencarnado, uma mensagem vinda da
eternidade, uma desdenhosa rejeição do mundo em um anúncio vindo
“lá de fora”, de além dos confins do tempo e do espaço.
A Bíblia não é uma negação do mundo, uma rejeição do
ser humano, uma negação do tempo e da história e uma condenação
de tudo que o ser humano fez em seu mundo e na história.
A Bíblia também não é algo destinado a ser superposto
ao mundo, ao ser humano e à história de fora para dentro, uma
revelação adicional de um significado oculto suplementar,
algo que esteja totalmente além das preocupações cotidianas das
pessoas e de sua existência habitual, algo que tenha de ser aceito
embora seja supérfluo, e que deva ter prioridade em relação à
realidade ordinária conhecida, que nos parece mais relevante.
Em
outras palavras, a reivindicação básica da Bíblia é não ser
interpretada em termos como estes: “Sim,
existe um mundo comum no qual você vive sua vida normal com os
demais seres humanos. Mas esse mundo é mau
e você é insignificante. Enquanto
continua a viver nele e obedecer a suas regras, você precisar
aprender meticulosamente todo um novo conjunto de verdades que lhe
parecerão sem sentido e incompreensíveis, e você tem de
acrescentar esta superestrutura de ideias estranhas ao que você vê
e conhece por meio de sua razão natural.
Thomas
Merton
(trecho
retirado da introdução do livro)
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